Desligas a TV
e abres o caderno
o poema que pensas escrever
te mostra um lugar no bosque
no centro
ou quase no centro
alguém caminha
sobre folhas que estalam
como se um animal
as houvesse pisado de propósito
o poema aguarda um sinal
algo que confirme
que esse bosque é o lugar
onde se pode abrir o interstício
onde se pode cavar o túnel
(a tela apagada da TV
de súbito penetra no poema)
dá-se conta
de que a margem se desdesenha
de que a realidade
enche-se de incertezas
o animal ainda não existe
o lugar poderia não ser o lugar
mesmo assim o poema avança
acata a verossimilhança da fissura
a possibilidade da passagem
reconhece a paisagem para que nada sobressaia
para que o pontiagudo não perfure a página
o sinal que espera
é a água que aperfeiçoa seu discurso
logo abaixo de teu corpo
entendes que o poema
deixa o animal em suspenso
cria a própria possibilidade da água
aceita-a como uma realidade almejada
para que as palavras possam volver de novo imantadas
(a tela apagada da TV
traz ao poema os mortos
das últimas vinte e quatro horas)
perguntas a ti mesmo
se o conteúdo
ou a forma
em que o poema se escreve
podem modificar a realidade
voltas a prestar atenção
ao que queres dizer
e o dizes
o animal se detém
os peixes deslizam
com seu rosto
impregnado no corpo
por que peixes pergunta o poema
porque um peixe
é uma possibilidade entre muitas
submerges a mão na água
e as coisas acontecem noutro lugar
(a tela apagada da TV
desborda o poema
com os massacres das últimas vinte quatro horas)
respiras fundo
cerras os olhos
e desconexas cenas passadas
projetam-se no interior de tuas pálpebras
mãos que se entrelaçam
uma revoada de pássaros
(o poema pergunta pelo número de mortos
debaixo dos escombros
porém a tela apagada da TV
nada responde)
pensas que criar
significa estar disposta
a correr o risco de aceder à realidade
e aceder à realidade
talvez seja tocar a forma escorregadia do peixe
deslisar a mão pelo seu corpo
como se quisesse tomar-lhe a medida certa
preferir não se molhar
embora a umidade seja o sempre almejado
saber que já é hora de abandonar os parênteses
e mesmo assim ser incapaz de fazê-lo
(a cor negra
da tela apagada da TV
contém a resposta
à pergunta do poema)
levantar a mão
dar as boas-vindas ao animal
apesar do muito que desentoa nestes versos
olhar nos olhos de tantos peixes quanto possível
e entender que um milímetro importa
e dois podem provocar um cataclismo
a lembrança
já sabes
é uma realidade distorcida
talvez as mãos nunca tenham chegado a se entrelaçarem
talvez só tenha havido um pássaro
a cor negra
da tela apagada da TV
é o lugar de todas as guerras
e os mortos não podem mais continuar a serem contados
as imagens se ampliam
até o ponto de nada significarem
as mãos são sementes que se debulham
a revoada de pássaros é um toldo de sons
sobre a cabeça do poema
abre os olhos
desejosa de olhar o animal
e o que vês
é um corpo sem vida que se multiplica
em milhares e milhares de corpos translúcidos
sobre o ocre seco das folhas
dás conta
de que não apenas a lembrança
distorce a realidade
poetizar produz o mesmo efeito
o poema é o lugar da distorção
e distorcer não é imaginar
é criar uma bolha
que te mantém a salvo
é trocar a proximidade do animal
pela de alguns corpos sem vida
não é um prazer visual
mesmo que tenhas pensado
mesmo que não tenhas escrito
nada além de uma anomalia
que se introduz na realidade
e a torna mais densa
a cor negra
é a realidade distorcida
a realidade distorcida é o peixe
que morde a própria cauda
indiferente à guerra que se livra
detrás da tela apagada da TV
a simetria
pede que ligues o aparelho
porém negas a isso
apenas fechas o caderno
e deixas de imaginar
esse lugar no bosque
o farfalhar das folhas
pois criar não é imaginar
mas correr o risco de alcançar a realidade
antes de findar o poema
olhas fixamente
a tela apagada da TV
sua negra cor
admites que a guerra
é a única realidade.
(in Como enterrar al padre en un poema – Corina Oproae
(TusQuets Editores, Barcelona, 2025)
Tradução para português: Everardo Norões.
Corina Oproae (Făgăraș, Roménia, 1973) é poeta, narradora e tradutora. Em 1998 fixou-se na Catalunha. O seu primeiro romance, La casa limón, recebeu o Prémio Tusquets de Romance em 2024. Publicou os livros de poesia Mil y una muertes (La Garúa, 2016), Intermitencias (Sabina Editorial, 2018), Desde dónde amar (Pre-Textos, 2021) e Cómo enterrar al padre en un poema (Tusquets, 2025). Em catalão escreveu La mà que tremola (2020), um livro de reflexão poética sobre o acto de escrever numa língua que não é a língua materna. Traduziu para catalão e castelhano autores como Marin Sorescu, Lucian Blaga, Ana Blandiana (Prémio Jordi Domènech de Tradução de Poesia, 2015), Tatiana Țîbuleac, Ioan Es. Pop, Angela Marinescu, Matei Vișniec ou Mary Oliver. É autora e tradutora da antologia A poesia do século XX na Roménia (2022).
Everardo Norões (Crato, Ceará, 1944) considerado pela crítica como um dos principais contistas e poetas do Brasil, Everardo Norões viveu em França, Argélia e Moçambique. Autor de vários livros entre os quais A Rua do Padre Inglês, Retábulo de Jerônimo Bosch, Poeiras na réstia e Garrafas que sonham macacos — recebeu diversos prémios literários, incluindo o prestigiado Portugal Telecom da Língua Portuguesa 2014, pelo livro de contos Entre moscas. Foi também finalista do 56.º Prêmio Jabuti. Publicado em várias revistas literárias, como Granta (edição brasileira), GareMaritime e Bacchanales (França), Quimera (Espanha) e Martín (Peru), entre outras, teve ainda a sua obra poética traduzida para francês, inglês, italiano, espanhol, catalão e quéchua. É também responsável pela organização da obra completa do poeta pernambucano Joaquim Cardozo, uma das vozes mais importantes da poesia brasileira do século XX.





