A escrita de Kátia Bandeira de Mello é artesanal, confeccionada com finos bisturis, fruto de maturação, e busca de precisão. Em Molduras, a autora cria (com habilidade, destreza e uma simbiose entre densidade e leveza) uma escrita em camadas. Na medida em que elas vão se desvelando, o que aparentemente estava submerso, emerge numa panóplia de significados, enigmas, cores, sentidos. Tudo permeado por inegável intertextualidade, plasticidade, frescor e claridade solar de um sofisticado humor – viés de alegria e pulsão de vida que a autora projeta nos seus narradores.
Ela não cede a fórmulas e repetições, não recicla um certo e requentado modo de produzir, pois para Kátia escrever se prende à força do experimento, razão da supremacia de sua linguagem carregada de múltiplos sentidos, emblemática na apropriação de metáforas e alusões. Classificar a sua literatura como experimental, seria muito pouco para definir uma escrita de expansões, dentro da qual o insólito, o nonsense, o suprarreal, o surreal, constituem uma voz e uma identidade singulares, que não encontro paralelos dentro do atual panorama da ficção conteporânea brasileira. Sem querer definir ou engessar seu fazer literário na camisa de força de uma escola, de uma vertente ou de uma orientação estilística, a verdade é que: a carpintaria ficcional-poética-visual de Kátia impõe-se pela ousadia, versatilidade, vigor, potência imagética, alta voltagem semântica.
Como uma viajante, uma andarilha que salta fronteiras e litorais, e nesses territórios, transcendendo o geográfico, o histórico e cultural, projetam-se mundos metafísicos, oníricos ou psicológicos que as filigranas de seus contos revelam, o que vai incidir em características que moldam seus personagens, numa tessitura que incorpora nuances das artes plásticas, do cinema, da fotografia, do teatro, e de tudo o mais que converge para uma apreensão artística, ela vai capturando detalhes dos seres, dos vegetais, dos objetos, nos imprevistos, nas conversas, nos fotogramas do dia-a-dia conturbado do entorno.
A carpintaria ficcional-poética-visual de Kátia
impõe-se pela ousadia,
versatilidade, vigor, potência imagética,
alta voltagem semântica.
Em razão desse olhar multifacetado, que não se acomoda ao real e tangível, vamos encontrar em suas Molduras muito além dos passe-partouts convencionais, ultrapassando os limites sensoriais e sentimentais de geografias traçadas por mapas oficiais, pois ela reedita, recorta, cola, descola e ressignifica suas criaturas num prisma renovador. Sempre disposta a trabalhar, como a mala abarrotada de livros, debaixo do braço carrega pralá-pracá alguns de seus mentores, num diálogo interpares, arrisco alguns nomes: Cortázar, Bolaño, Breton, Borges, Alfred Jarry, Bulgákov, .. (talvez, depois, ela possa citar outros)… compêndio de botânica? Hilda? Llansol? Mário de Andrade? Dalton Trevisan?
A autora transmite no espaço expandido da palavra sua inquietação criadora, tanto forma quanto na valorização de temáticas que se interpenetram. Ela inventa espaços topológicos que me lembram a garrafa de Klein – em que as noções de direita, esquerda, cima, baixo, dentro e fora não se definem, pois não há essa intenção ou preocupação. Seus textos, diga-se de passagem, não são estáticos, mas extáticos (de puro êxtase), se movimentam quando encontram o parceiro ideal: o leitor desembaraçado, ativo, disposto, abelhudo, indiscreto. Gosto de ler Kátia sem pressa, com o Google aberto, correndo atrás das pistas.
Numa entrevista que recolhi na internet, ela diz melhor sobre o seu modo de criação: “Eis a essência da arte: elaborar a estética sobre o conteúdo, guiando-se pelo mistério que cede a graça”.
Nesse livro, Kátia subverte desde o título, Molduras têm significantes e imagens que não se sujeitam a contornos ou enquadres de um objeto para se fixar na parede ou adornar um móvel. São quase 80 contos curtos que condensam: colagens*, objetos literários: a cadeira de Voltaire, Véu de Verônica, A bolsa, A Cômoda, A mesa, A caixa etc. E há interessantes figuras que pululam de um conto a outros, como o divertido agente 326, Kramp e a sua tara por camas.
Para um leitor curioso e empolgado, como eu, aconselho a ler ‘Molduras’ com uma lupa nas mãos, será uma espécie de desfolhar palimpsestos. Para terminar e endossar a sensação de prazer estético que me causa a leitura não apenas de “Molduras”, mas de qualquer texto ficcional ou poético da lavra de Kátia Bandeira de Mello, transcrevo, por harmonizar com o que eu penso, a lição de Lezama Lima:
“O que mais admiro num escritor? Que maneje forças que o arrebatem, que pareçam que vão destruí-lo. Que se apodere desse desafio e dissolva a resistência. Que destrua a linguagem e que crie a linguagem. Que durante o dia não tenha passado e que durante a noite seja milenar. Que goste da granada, que nunca provou, e que goste da goiaba que prova todos os dias. Que se aproxime das coisas por apetite e que se afaste por repugnância.“
*Página 26: “…Recorto o rosto de um para combinar com o dorso do outro e sigo picotando e colando membros e órgãos, transformando-os. Às vezes, dou-lhes asas como as asas em filigrana das moscas, crinas de cavalo, pescoços compridos à guisa das girafas, olhos de vaga-lumes.”
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Eltânia André nasceu em Cataguases (Minas Gerais/Brasil), atualmente mora em Portugal. Formada em Administração de empresas e Psicologia, com especialização em Psicopatologia e Saúde Pública. Autora de Manhãs adiadas (contos, Dobra Editorial, SP, 2012. Finalista do prêmio Portugal Telecom), Para fugir dos vivos (romance, Editora Patuá, SP, 2015), Diolindas (romance, Editora Penalux, SP, 2016, escrito em parceria com Ronaldo Cagiano), Duelos (contos, Editora Patuá, SP, 2018), Terra Dividida (romance, Editora Laranja original, SP, 2020), Corpos Luminosos (contos, Editora Urutau, 2022) e Diário dos mundos (romance, Editora Laranja Original, SP, 2022, escrito em parceria com Letícia Soares).
Kátia Bandeira de Mello é escritora, advogada e mestre em Direito Internacional, formada pela UERJ, com pós-graduação na Universidade de Londres e NYU. Radicada entre Lisboa e Miami, integrou o corpo docente da Fundação Getúlio Vargas e da Universidad Desconocida do Brooklyn.Publica regularmente em revistas e jornais literários como La Cause Littéraire, Colóquio – Gulbenkian, Words Without Borders e São Paulo Review. É colunista e curadora da Philos – Revista de Literatura da União Latina. Entre seus livros destacam-se Colisões Bestiais (Particula)res, Jogos (Ben)ditos e Folias (Mal)ditas, Caderno de Artista, A Patafísica do Quadrado e Flaco, o Coruja. Em Portugal, publicou Baleias, Bromélias e Outras Naturezas, Experimentações Poéticas e Molduras. Foi agraciada com o Prémio Escritora Sem Fronteiras (Flipoços, 2018), e tem sido convidada de instituições como Columbia University, West Point e Instituto Camões. Participa regularmente em festivais internacionais como a FIL Guadalajara, LitFestBergen, New York Poetry Festival e Folio/Óbidos.