Eu não quis que morresse. O fim, assim, é tão precário, oco para a compreensão. Foram as circunstâncias que nos fizeram escapar, cada um para o seu lado. Janete era de família abastada do norte do Pará. Havia criação de búfalo e outros empreendimentos que sustentavam o status dos Carvalho e Sousa. Nos conhecemos em meados da década de noventa, nas gravações do filme “Você não é capaz”, em que eu era coadjuvante, uma personagem pouco relevante, e ela era a dona da porra toda: a sua família havia cedido uma fazenda imensa para a residência e para o staff da produção. O cenário era exuberante, com um fausto de flora e fauna, que me fez, muitas vezes, repensar a vida mundana que levava. Fui apresentado a ela por Torquato Moraes, o diretor. Logo, a sua tez iluminada me cegou. Me apaixonei perdidamente. Ela, ao contrário do que se pode pensar, era uma mulher simples, e desfrutava do espaço como mais uma do grande núcleo. Disse que, à época, se interessava por cinema e que queria participar como “estagiária”, pois logo se mudaria para Nova Iorque, para estudar na melhor escola de cinema. Por que uma menina tão rica se desgarraria da sua sina de nobreza? Os pais a apoiavam, de longe, mas sabia que, tendo avisado aos criados, ela não poderia se “enturmar” com gente da minha trupe. Os poucos minutos que tínhamos juntos eram nas externas, nas gravações e nas refeições. Ela comia junto, na grande mesa das obscenidades. Falávamos bobagens o dia inteiro, e eu tinha medo de que isso a espantasse; nada disso, ela se chegava mais. Torquato Moraes pediu que ela ajudasse na fotografia, pois viu – não sei como – que ela tinha “tino” para a coisa. De fato, Janete era muito sensível, tinha alma de artista. Tentei me chegar a Nonato, o seu guarda-costas, e no começo foi difícil, ele relutava em me acenar sequer uma esperança de amizade. Aos poucos, quebramos o gelo. Dava-lhe presentinhos que eram muito auspiciosos, como uísques, cigarros importados e charutos. Ele gostava do que era bom. Passamos a nos reunir eu, Nonato e Janete, em conversas alongadas. Ela me falava de seu desejo por ganhar o mundo. Perguntou se eu não queria acompanhá-la no curso de cinema. Falei que, essencialmente, era ator, e já estava com projetos engatilhados, assim que terminasse de rodar o filme. Numa noite de chuva, enquanto boa parte se abrigava na casa-grande, seguimos para o mato para tomar banho de chuva. A água escorria em sua pele-escultura. Seu corpo vibrava prazer. Latejávamos, uníssonos. Possuímo-nos aí, em meio à lama. Nossos encontros eram furtivos, com ajuda de Nonato, que agora era meu amigo.
Combinamos de ir ao Rio, assim que acabassem as gravações. Foram longos oito meses de confinamento de nós. Já estava saturado de ter de esconder o amor. No Rio, viajamos, enquanto Nonato ficou no meu apartamento em Copacabana, maravilhado. A notícia da gravidez veio como uma bomba. Me apresentei à sua família, com uma nova aparência, sem barba e com cabelo regrado, onde fui, de início, bem recebido. E logo seu pai quis saber das minhas intenções. Disse, sem titubear, que queria me casar, o quanto antes. “Pronto, pois que seja assim: em cinco meses teremos a festa aqui na fazenda!”, determinou, voraz. Balancei a cabeça, intimidado, em sinal positivo. Sua mãe sorria leve para mim, concordando com a minha hombridade de bom rapaz. Dois meses depois, Janete perdeu, de forma natural, o bebê, que seria Augusto – em homenagem ao avô paterno – ou Maria Luíza. No breve período de luto, só pude me encontrar com ela duas vezes, para a acalmar e dizer que estaria com ela para tudo. Depois, fui proibido de encontrá-la. Todos os canais se cerraram. Nonato foi mandado embora. Janete foi despachada para o exterior, para estudar – para fugir de mim: o perigo. Recebi, um ano depois, um cartão postal, onde ela me revelava que se não tivesse feito isso seu pai iria me matar; que, para preservar a minha vida, teria concordado em partir. O velho conseguiu nos apartar. Depois conheci Maria Lúcia, com quem sou casado há quinze anos. Mas nunca me esqueci de Janete e do nosso possível destino.
♦
Adriano B. Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará (Brasil). Em 2018 lançou seu primeiro romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”; em 2021 o romance “Em mim, a clausura e o motim”, pela Editora Penalux; e em 2022 a coletânea de contos “Não há de quê”, pela Editora Folheando. Colabora mensalmente com as Revistas Mirada, Samizdat e Vício Velho. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária e em Revisão de Textos. Membro do Coletivo de Escritoras e Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.