“O Naufrágio dos Peixes” I Everardo Norões
Sai do avião e sente que nunca mais seria o mesmo. Quando a porta se abre, a sensação de limbo.
Verão. No rosto, o salpicar da areia, como se estivesse sendo atacado por um exército de pulgas. Uma poeira amarela, fina, cobre parte do piso. É a mensagem do deserto trazida pelo vento Siroco, que migra dali à Amazônia. Calor e pó.
As vozes lembram-lhe um rolar de seixos.
Através da vidraça, avista a fileira de palmeiras ao longe, como beduínos de pé.
A sensação de “estrangeiro”, o livro de Camus, o azul profundo das águas de Tipasa… Até que alguém lhe acena. É um homenzinho baixo, de bigode, que o chama. Mesmo sendo o seu codinome, traz-lhe conforto. Imagina uma espécie de liturgia de batismo: palavra a transformá-lo num Outro. O novo passaporte com aquele carimbo azul iria acompanhá-lo. Sem saber até quando…
Gestos e falas se amoldando à fotografia do Paulo Pessoa Mendes salva das perquisições policiais. Encontrada em gavetas mortas. Finalmente, enviada através de um amigo de passagem pela Argentina.
Para facilitar a memorização, alguém havia sugerido juntar o “Pessoa” do poeta ao novo apelido.
Quanto ao “Mendes”, um jogo mnemônico montado a partir do verbo mentir. A lembrar as aulas do professor de Literatura sobre o livro Peregrinação, do também português Fernão Mendes Pinto, em torno “das muitas e muito estranhas coisas que viu e ouviu por reinos distantes, dos quais nenhuma notícia se tinha”. Por julgarem-no fantasioso, passou a ser chamado Fernão Mentes Minto.
Paulo Pessoa Mendes. É o nome indicado para registro no passaporte “emitido” na Argentina por Ronaldo e Simón, “especialistas” em forjar documentos, que logo desertaram o país. Cada um deles, um rumo diferente: Suíça, Israel. Com a ajuda dos dois, agora vê-se “acompanhado” por uma espécie de alter ego que nunca mais o abandonará. Um “outro” a carecer de um passado. E para quem o futuro seria tão estranho quanto aquela cidade branca, como a cal dos mortos.
Curioso escutar seu nome “Paulo” pronunciado em francês: Polô. O homem pede-lhe os documentos. Examina-os e informa que alguém o espera à saída da área de desembarque.
A multidão no saguão. Gente parecida com familiares nordestinos.
O jovem lhe aponta o próprio peito. Beija-lhe as duas faces à moda local. Enuncia o nome: Faruk. É o mesmo nome do rei do Egito deposto, assunto de tantas matérias nas velhas revistas que gostava de folhear quando menino. Mas o Faruk à sua frente é alto, magro. Nada a ver com o rei que era dado a festas frequentadas por atrizes famosas, sempre em tratamento contra a impotência e destronado pelos oficiais de Gamal Abdel Nasser.
Rumam para o estacionamento.
Faruk aponta a velha Renault. Acomoda a valise no banco traseiro. Mais três jogos de roupas e o básico para o asseio. Nem mesmo um livro ou outro presente para quem o irá acolher.
O jovem precisa dar vários toques na ignição. Faz comentários em francês, entrecortado de algumas palavras em árabe. O automóvel, finalmente, dá partida. Bate três vezes no painel do carro, como se estivesse acarinhando um amigo.
À frente, a longa avenida. Casas feridas pela lepra do descaso. A ponte sobre um rio fétido partindo em duas a grande via que os levará até a cidade. A casbá, bairro árabe, vista de longe parece uma montanha de cubos superpostos. Luzidia. A doer nos olhos como as nuvens do Esquecimento.
Faruk fala. Gesticula. Abre-lhe portas imaginárias para desvelar uma Paisagem que apenas começa a se conformar. Estaciona próximo à *Larbi Ben M’hidi e comenta sobre o herói que dá nome à rua.
Olhando em torno, imagina que lugares, assim como gente, têm cheiro e cor.
Seguem para o restaurante. O ambiente sabe a peixe e a um cheiro desconhecido. Faruk explica: é o raz-el hanout ou a “cabeça das especiarias”.
De onde estão sentados divisam o porto. Ali ancoraram piratas bérberes, desembarcaram Cervantes e Karl Marx. E o grande escritor português Miguel Torga. Ao chegar àquele mesmo cais, num setembro de 1953, Torga testemunha um policial francês dar duas bofetadas no rosto de um trabalhador argelino. É quando profetiza nos seus diários: aquelas duas bofetadas um dia iriam custar caro à França. E conta “ver o céu claro da Argélia abrir-se ligeiramente, e Maomé tomar nota do caso no seu canhenho de represália”.
A Guerra contra a França começaria no ano seguinte.
O garçom traz os pratos.
Olha aquele Mediterrâneo azul. Azul.
‒ Sou Paulo Pessoa Mendes! diz baixinho para si mesmo.
E sorri. Um sorriso sem razão.
Mesmo assim, sorri.
*{Larbi Ben M’hidi(1923-1957), herói e mártir da guerra pela independência. Assassinado (no laudo oficial consta suicídio) pelos serviços secretos franceses. Em 2001, o general Paul Aussaresses (1918-2013) confessa ter matado o líder argelino na noite de 3 a 4 de março de 1957. Responsável por um “esquadrão da morte” durante a Guerra da Argélia, depois instrutor das forças especiais dos Estados Unidos em Forte Bragg, Carolina do Norte. Nos anos 1970, enquanto adido militar da França no Brasil, colabora com a repressão e ministra “aulas” no Centro de Instrução de Guerra na Selva, em Manaus. Até que um livro com suas confissões motiva sua expulsão do Exército francês e a retirada da condecoração da Legião de Honra}.