Quiromancia — iniciação
Ver para sondar linhas incontínuas,
declives do coração, a corruptela
lasciva numa mão aberta.
Pensava no corpo nu e no olhar
desperto para os labores da forja,
da inscrição, pensava
no exame escolástico das impressões
desde que o primeiro sangue tingiu de ferro
a pele potável em gozo mercurial,
como luz queimando a púrpura
a boca de um travesti
: e a cada sulco o seu desastre.
Abro a mão direita ao final de cada dia,
afastando os dedos como um animal de espinhos
em agonia olímpica. Procuro vestígios
desse mênstruo tenro, a gesta
metabólica, a sua cavalgada.
Um resquício do primeiro cio
ou o desenho inequívoco
de um talento.
Uma vogal que me faça arder
para além dos desastres.
*
O corpo tendia para a crucificação
O corpo tendia para a crucificação
o justo golpe em espaço livre no tempo em que
a tarde queimava num banco de jardim
e os seres sonhavam a geração inteira na sua sobrevida,
o dorso quente sobre a madeira a exalar
temores, respingos de ar
a fome cortesã.
Éramos o alvorecer, os deuses juvenis a que Deus
dava calor e bênção, assombro térmico
de mão vulcânica sobre as frontes mornas
quase aéreas
despregadas pela compaixão.
Do corpo sabia-se pouco mais que a ânsia
replicada a cada ano, ouvia-se dele
o sopro avulso
o assobio do cutelo raiando o sexo,
sabia-se por vezes a seda mínima
fugitiva,
e um odor de especiaria adocicando parques
e caves íntimas, incenso-fátuo
nas tardes que ebuliam precoces
de tanto verão.
*
Guarda a manhã
Tudo o mais se pode tresmalhar
Daniel Faria
O gesto do pão alvoraçava o dia
e nós corríamos cedo a manhã, a primeira
lâmpada, como a um braço de mar que se sobe
em nervo pela ternura.
Canta-se:
uma cantiga prece de tão salubre
exorbitava o luto, os aranhiços dos quartos
demónios miúdos.
Não se sabia do outono ainda
das provações da pele. Do lume
arrefecido à míngua de domingos, nem
dos velhos engelhados um a um
como nêsperas à chuva.
Não lhes saberia dizer que em mim
uma ferida benigna drenava a manhã
nem agora (se pudesse) que era cedo ainda.
Quem me espera?
*
Caligrafia
Montávamos a emboscada da noite
o círculo azul em forma de acontecer
e eu (camisa branca rendada em corpo nu)
esperava-te caligráfico
já potável
a oxigenação da escrita devolvida ao rosto
Dispunhas circular o alfabeto dentro dos vasos da água
a paixão botânica —
uma letra para cada haste
a forma breve de um pássaro quase polinizando
quase feito para voar
Li-te da mão aquática a palavra pronta
performativa gesta a entumecer o mundo
e quis a palavra água sorvida toda
eurítmica em duplo gole
Contigo também eu seria água
maré levantada de demorado pousio
em golfada atlântica
pés ardendo sobre o sal
Um modo grego de modulação cantado em pontas
assim a caligrafia ampliasse pulsátil
nota evidente
arroios mansos nas linhas do rosto
*
Baloiço
Um último dia para acordar —
converter Deus à cabra-cega
ao lamber da nuca num encontro
gelado e baloiço no parque
Um último dia genial
agastado como a flor do nojo
o gesto acólito da vontade
Acorda-se sempre contra a transcendência
para que o dia se verta
em torção manual
no entendimento
para que derrame o dom
um qualquer presságio de pureza
Deus prometido no calor do leite
da língua na subida
baloiçando pequenos astros, solitário
e, abaixo, a escuridão imensa
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Helena Costa Carvalho (Nazaré, 1982) é actualmente investigadora no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa (FLUP). Doutorou-se em Estudos Portugueses e Românicos (FLUL, 2022) com uma tese sobre a obra de António Ramos Rosa, usufruindo de uma bolsa de doutoramento da FCT. É licenciada e mestre em Filosofia. Recebeu o Prémio Revelação de Poesia 2010 da APE – Associação Portuguesa de Escritores. Tem publicado poemas e ensaios em várias revistas e colectâneas. É autora dos livros de poesia Vocalise (Urutau, 2021) e Núbil (Douda Correria, 2021).