“A poesia foi muito importante na minha vida.”
Hannah Arendt
“O poema não é a cópia do mundo, mas a sua própria transformação.”
Walter Benjamin
Hannah Arendt (1906–1975), uma das pensadoras mais relevantes do século XX, gostava de aprender poesia de memória como se fosse a coisa mais natural do mundo, como se o mundo nunca deixasse de ser mundo. Sabia que a presença da poesia na vida interior é um assunto do nosso coração — tantas vezes cansado — e não uma forma de auto-representação dirigida para fora. Os poemas que se aprendem com o coração remetem a uma função e a um sentido distintos daqueles que servem para mostrar como posse ou exibir como símbolo de competências culturais.
Sabemos que Arendt tinha muitos poemas da sua predileção, e entre os seus autores de eleição figuram Rilke, Goethe e Brecht. Também é sabido que via na linguagem métrica — na sequência rítmica e estrófica de palavras — uma promessa de futuro, uma garantia de persistência e de compromisso com o mundo, mesmo para lá da história.
A pensadora reiterava a importância da poesia na sua vida e no seu pensamento. Condensava a sua máxima intelectual no aforismo tantas vezes citado: “O que quero é compreender.” Importa lembrar que esta afirmação não era ingénua, mas profundamente crítica, dirigida contra os seus colegas homens, como ela própria explicou — “Os homens gostam muito de agir e deixar a sua marca, ou seja, ganhar poder e influência, enquanto eu só quero compreender.” Numa entrevista televisiva em 1964, Arendt negava mesmo o seu estatuto filosófico: “Não me considero para nada uma filósofa, nem acho ter sido admitida no círculo dos filósofos…”
Mas essa busca de compreensão está no centro de Vita Activa, uma das suas últimas grandes obras, onde encontramos reflexões assombrosas sobre a persistência do mundo e da arte. Arendt defende ali a “inutilidade das coisas artísticas” como uma forma de resistência. Refere-se à capacidade da arte — e, em particular, do poema — de criar memória e testemunho: aquilo que, sendo letra morta, dá lugar a um pensamento vivo. Produzir é sempre submeter-se a um objectivo, por isso, afirma: “A obra de arte não cumpre nenhum objectivo se tomarmos esta palavra no sentido em que dizemos que o objectivo de uma cadeira cumpriu-se quando alguém se sentou nela.”
Essa persistência da arte criada sem finalidade revela-se extraordinária: sob certas condições, a obra de arte é capaz de atravessar séculos, acompanhando as transformações existenciais do mundo. Arendt não fala aqui da autonomia estética no sentido da tradição idealista, mas fornece a prova dessa resistência com os versos do poema Magia (1924), de Rainer Maria Rilke:
“Tais formas surgem
de uma transformação indiscriminável: sente e crê!
É frequente sofrermos pelas chamas que se tornam cinza.
Mas na arte é o pó que se faz chama.”
É a arte que demonstra, na sua própria existência, a ausência de finalidade. O poema acredita por si mesmo na sua função intemporal, mas também atual. Rilke, para Arendt, é a garantia de outra possibilidade de reverberação do poema: a força transformadora da declamação lírica. Mais do que uma questão de vocabulário ou estilo, trata-se de uma magia particular, o poder da palavra poética de transformar o efémero e o apagado — o consumido, o morto — em chama viva.
A obra de arte faz “resplandecer” a mundanidade do mundo. Graças à sua persistência, o que muda no mundo pode adquirir o esplendor de uma possível imortalidade. Quando o pensamento meditativo se dedica à arte, ele não produz: transforma. E essa metamorfose radical — como sugere Rilke — permite inverter o curso natural das coisas. A metáfora é, nesse sentido, o veículo mais claro desse processo: sentimentos, imagens, composições, tudo pode sair da prisão do Eu, da mera consciência, para abrir-se à vastidão do mundo.
Arendt vê na linguagem poética um gesto de resistência contra a efemeridade,
uma aposta na durabilidade, na persistência do mundo enquanto mundo.
Num ensaio sobre Walter Benjamin, Arendt retrata-o como alguém que “pensava poeticamente”, embora não fosse poeta. Em Benjamin, a metáfora é o dom mais misterioso da linguagem — aquele que permite mostrar o invisível, torná-lo audível, experimentável. O seu pensamento metafórico não é evasivo nem esteticista: o materialismo de Benjamin torna-se visível justamente nessa capacidade de poetizar fragmentariamente o mundo, tornando-o legível. O seu “pensamento poético” não encena nenhuma religião da arte desligada do mundo, mas oferece resistência à barbárie — e esse é o ponto de contacto essencial entre Arendt e Benjamin.
Sempre que Arendt se refere à poesia ou à literatura, fá-lo com a convicção de que a poesia é, talvez, a mais humana e a menos mundana das artes. O seu material é a própria linguagem. Por isso, os poemas — frágeis na forma, mas persistentes no tempo — figuram entre os mais duradouros objectos do mundo.
Nem a poesia nem o pensamento produzem “coisas” no sentido utilitário. E, no entanto, ambos inscrevem-se no mundo pela linguagem. Essa inscrição — delicada, essencial — é o que permite conservar a memória da humanidade. Arendt via na linguagem poética um gesto de resistência contra a efemeridade, uma aposta na durabilidade e na possibilidade de permanência do mundo enquanto mundo.
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Nota do Autor: Este artigo foi originalmente publicado em 2018 na revista Palavra Comum. Desde então, o tema da relação entre poesia e filosofia, especialmente no pensamento de Hannah Arendt, tem continuado a ser explorado e debatido por diversos estudiosos. As ideias aqui apresentadas refletem a perspectiva do autor na época da sua redação, embora a reflexão sobre a persistência da arte e o papel da poesia no mundo contemporâneo continue a ressoar nas discussões filosóficas atuais.
Referências:
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Hannah Arendt, Poemas, Herder Editorial, 2017.
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Hannah Arendt, A Condição Humana, Relógio D’Água Editores.
Tiago Alves Costa é escritor, ensaísta e professor associado na BAU – Centro Universitário de Artes e Design de Barcelona. É editor da revista Quiasmo e investiga os cruzamentos entre literatura, filosofia e contemporaneidade.