Húmus de Raul Brandão: Uma Redescoberta Intemporal da Condição Humana
“Raul Brandão derruba com um gesto os cenários do nosso quotidiano e ergue, no seu lugar, a vila fantasmagórica, a cenografia esverdeada onde circulam, como animais cegos e grotescos, as figuras de Húmus: Gabiru, Joana, as velhas, o Santo…” – José Saramago
A editora Caleidoscopio (Granada) convida-nos a navegar no oceano enigmático da literatura portuguesa com a reedição de Húmus, obra imortal de Raul Brandão, agora traduzida para castelhano por Verónica Palomares Maíllo. Mais do que um simples tributo à singularidade estética de Brandão, esta edição representa uma oportunidade imperdível para os leitores mergulharem na essência intemporal de um génio literário único, assim como no país que ele tão profundamente retrata.
Húmus, cujas primeiras edições desvaneceram-se até à versão definitiva de 1926, abriu um espaço inexplorado na narrativa portuguesa. Raul Brandão, com uma ousadia sem igual, subverteu as normas literárias do seu tempo, erguendo um texto que dissolve as barreiras entre a poesia e a prosa, permitindo que o mundo onírico e o fantasmagórico se entrelacem com um realismo cru que ecoa a herança naturalista do autor. A sua criação vai muito além de um simples romance, Húmus emerge como um verdadeiro campo de batalha onde as convenções narrativas são obliteradas.
No contexto turbulento de Portugal no início do século XX, uma era de convulsões sociais e políticas, Raul Brandão, que fez parte da extraordinária geração de Orpheu, despontou como uma voz ímpar e inconfundível, expressa em obras como Os Pobres, Os Pescadores e até mesmo nos não menos instigantes três volumes das memórias do escritor. Num país então mergulhado nas tensões entre tradição e modernidade, Húmus captura essa transição com uma precisão quase alquímica, refletindo a inquietação e a busca por significado em tempos de caos.
A complexidade de Húmus, não se revela apenas na sua estrutura fragmentada e lírica, mas também na profundidade dos temas universais que atravessam o tempo. É, pois, um livro que, no contexto da nossa actualidade – um mundo saturado pela volatilidade da informação e pela incessante procura de sentido – oferece uma visão que desestabiliza e expõe a fragilidade de uma lógica confortável. Brandão desafia-nos a repensar as noções que normalmente separam a vida da morte, o sonho da realidade, a natureza da civilização, os hábitos da avareza, o dinheiro do tempo, o amor da inocência.
Sob a forma de um diário disperso, a obra centra-se numa vila sem nome, um microcosmo que encapsula a totalidade da condição humana. Este espaço, que é simultaneamente símbolo e cenário, abriga personagens que vão do grotesco ao desfigurado, cativos de normas e imperativos morais absurdos. Aqui, a figura de Gabiru destaca-se como uma voz crucial, um peregrino que explora as profundezas da consciência, em busca do húmus existencial. A fome, a pobreza, a falta de expectativas e o absurdo do sofrimento humano, por sua vez, contrastam fortemente com as mentiras quotidianas. Além disso, os costumes, os rituais sociais e os compromissos construídos em torno da vida em comunidade também se tornam absurdos, o ser humano procura, então, disfarçar-se, entreter-se e matar o tempo com trivialidades. No entanto, quando se depara com a falta de transcendência do mundo e se confronta com a terra nua e a realidade em decomposição, todos os entretenimentos se tornam cinzas — “desnudos e ridículos”. Assim, a nudez é novamente associada ao ridículo, e a verdade revela o irracional: a vida, nua, não é senão uma pesada ironia. Portanto, o mundo, despojado das suas máscaras, não é mais do que húmus.
Mas é precisamente no húmus — e aqui reside o grande paradoxo desta obra — que a fronteira entre vivos e mortos se torna difusa, permitindo o diálogo entre ambos, isto porque a vida em decomposição é morte, mas a morte fértil também é vida. Em última análise, a grande relação conceptual estabelecida pelo romance é que a existência é como uma floresta: um órgão corrompido, deteriorando-se lentamente em direcção à morte, mas que, ao mesmo tempo, se alimenta dessa própria morte. Assim, a vida nutre-se dos fermentos pútridos dos seus próprios cadáveres.
A obra é um emaranhado sublime de filosofia e poesia, onde Brandão, que viveu parte da sua vida na cidade de Guimarães, desbrava as regiões intersticiais da existência. Expressa, assim, com precisão a dualidade da vida, afirmando que “o mundo está feito de dor – a vida está feita de ternura.”
“Por detrás da insignificância estão os céus, os mundos, as vagas douradas. Está o desespero. Está o instinto feroz. Por detrás disso estão os torrentes de sol e de pedras e os mortos, mais vivos do que quando estavam vivos. Por detrás do tabique e das palavras estão a Vida e a Morte e outras figuras terríveis. Por detrás das palavras com as quais te enganas, das que te sustentam, das palavras mágicas, sinto algo descabelado e frenético, o assombro, a confusão, a dor, as forças monstruosas e cegas.”
Em suma, a reedição de Húmus pela Caleidoscópio vai muito além de uma simples tradução: é a redescoberta de uma obra que rompeu barreiras literárias no seu tempo e que continua a ressoar profundamente com o leitor contemporâneo. A tradução de Verónica Palomares Maíllo preserva a grandeza e a complexidade do original, oferecendo aos novos leitores a oportunidade de explorar a visão singular de Raul Brandão. Esta é, pois, uma leitura indispensável, um convite à introspeção e à reflexão filosófica sobre a essência da condição humana, um compêndio atemporal, imprescindível para quem deseja desvendar o intrincado mosaico da existência de um autor que, com a sua obra, provocou um verdadeiro choque estético cujas reverberações continuam a ressoar ao longo das décadas.