Alienação Tecnológica e Poder: A Visão de Slavoj Žižek sobre a IA
“O homem é, ele próprio, o resultado das suas invenções”
— Jean-Pierre Dupuy
O filósofo esloveno Slavoj Žižek, amplamente reconhecido como uma das mentes mais provocadoras e influentes do pensamento contemporâneo, combina uma rara habilidade para desconstruir os mitos da cultura popular com uma análise profundamente enraizada nas teorias filosóficas e psicanalíticas, especialmente influenciado por Jacques Lacan, cuja obra é central na sua abordagem ao desejo, à ideologia e à subjetividade. No seu recente artigo sobre a pausa no desenvolvimento da inteligência artificial (IA), Žižek oferece uma perspetiva que transcende as questões técnicas, explorando as complexas dimensões políticas, éticas e existenciais suscitadas por esta tecnologia. Autor de obras seminalmente disruptivas como Viver no Fim dos Tempos e O Sublime Objeto da Ideologia, Žižek reafirma o seu estatuto como pensador de vanguarda ao questionar o progresso desenfreado da IA, tanto no impacto que pode ter no futuro quanto na forma como nos obriga a confrontar as fragilidades e paradoxos da condição humana no presente.
O filósofo destaca o pânico entre as elites tecnológicas, temerosas de que a IA ultrapasse a sua capacidade de controlo. Este receio, argumenta o autor, não é altruísta já que a sociedade moderna, cujas elites temem perder o poder, vive uma constante tensão entre tradição e inovação. O problema não reside apenas no impacto da IA sobre a humanidade, mas também na forma como ela poderá reconfigurar as dinâmicas de poder, colocando mesmo as classes dominantes em posição de vulnerabilidade.
Žižek interroga: se países como a China e a Rússia continuarem a desenvolver a IA em segredo, como será possível debater os riscos de forma coletiva e democrática? A pausa de seis meses sugerida pela carta aberta do Future of Life Institute parece mais uma manobra para ganhar tempo do que uma solução plausível para os desafios que a IA impõe.
“A verdadeira ameaça da inteligência artificial não é apenas o que ela pode fazer, mas o que nos força a reconsiderar sobre o que significa ser humano.”
Baseando-se nas ideias de Yuval Harari, Žižek adverte sobre o risco de uma divisão social profunda. Num futuro onde a biotecnologia e os algoritmos poderão criar “corpos, cérebros e mentes” artificiais, a sociedade poderá fragmentar-se entre aqueles que controlam estas tecnologias e os que permanecem excluídos. Contudo, Žižek vai mais longe: mesmo os que comandam essas inovações poderão tornar-se irrelevantes perante sistemas autorreprodutivos que dispensam completamente a intervenção humana. Nesse cenário, a ameaça da IA não se limita aos trabalhadores, mas estende-se aos próprios criadores do sistema.
Alienação Tecnológica
Žižek descreve como a IA já está a remodelar as nossas relações humanas. Os chatbots modernos, enquanto simulacros, oferecem conforto emocional sem os riscos das interações humanas autênticas. Esta “satisfação descafeinada”, como Žižek a designa, intensifica a alienação, incentivando-nos a aceitar ligações “artificiais” porque são mais seguras e previsíveis. Num mundo onde as tecnologias simulam empatia sem realmente a possuírem, a conexão humana tornar-se cada vez mais mediada e artificial.
Um ponto crucial da análise de Žižek é a ideia de que a tecnologia moderna já não se orienta pelo desejo de dominar, mas antes pela exploração do desconhecido. Citando o filósofo Jean-Pierre Dupuy, Žižek afirma que o futuro da ciência e da engenharia reside na aceitação da “não-maestria”, no reconhecimento de que as tecnologias emergentes podem adquirir características imprevisíveis. Esta aceitação do imprevisível transforma a IA numa arena de possibilidades tão fascinantes quanto perigosas.
Mais do que temer o futuro, Žižek desafia-nos a questionar o presente: o que significam liberdade, controlo e dignidade na nossa era? Antes de nos prepararmos para o que está por vir, é imperativo enfrentarmos estas questões fundamentais e explorarmos formas de coexistir com as tecnologias emergentes sem comprometer o sentido da nossa humanidade.
Este debate transcende o âmbito técnico e apresenta-se como um apelo urgente para repensarmos as nossas prioridades éticas, políticas e filosóficas num mundo em constante reinvenção. O verdadeiro perigo, afinal, talvez não resida na IA em si, mas na nossa cegueira coletiva face à necessidade de imaginar um futuro onde a tecnologia e a humanidade se entrelacem num equilíbrio significativo e justo. Como Žižek tem reiterado ao longo dos últimos anos, a filosofia mantém a sua relevância precisamente quando nos desafia a confrontar as contradições do nosso tempo e a questionar tudo aquilo que tomamos por inevitável.
Fotografia de Slavoj Žižek por Matt Carr.