“Tudo que alcanço é um cata-vento sem Deus” I 6 poemas de Marcelo Benini

Prorrompimento da poesia
Todo calendário venta em maio
Todo vento existe até que as coisas caiam
Uma jarra é um vento no chão
Todo dicionário é museu de palavras
O homem que lê dicionários visita
Os vestidos da palavra
Mas palavra tem vestido
Pergunta alguém
Sim, palavra tem vaidade
De loja
Só o poeta conhece a nudez da palavra
A palavra nua em brasas de dicionário
Um vento derruba a jarra
Em maio.
*
Flores de Kafka
As cores sequestradas
Mistificadas em jardins
Ciano, magenta, amarelo e preto
Adesivos, banners, catálogos, prospectos
Brindes, camisetas, painéis
Uniformes anunciam a impossibilidade
De não estar mais dentro daquelas cores
De viver além do azul ou do vermelho
De fugir da identidade
De jogar o corpo fora da escala.
*
Terra sem males
Todas as palavras rudes
Formam as montanhas que foi um dia
Minas Gerais
Toda máquina renasce
No contingente ser das máquinas
Todo o embaraço humano
Ignorado pelos gatos
Todo vazio entre átomos
Tudo que se rompeu
Fios, barragens, amores
Tratados
Restos de construções gramaticais
Anais das instituições
A promessa de vir e não vir
Vidas em corpos arrestados
Presos a esse imenso vazio
Que desmatamos
As cidades são pastos cinzas
Sem onças
Apanha-se a vida no chão
Até que haja o consenso de que todo pasto
É cinza
Fica mesmo é um mato
Um imenso
De precários rebocos.
*
Passarinho
Só sei fazer poemas com passarinho
Todas as palavras cabem em passarinho
Dor, por exemplo, é uma palavra que
A gente não pensa em passarinho
Mas dor é passarinho
Na palavra gaiola
Saudade é uma palavra passarinho
Que procura terras distantes
Deus é passarinho no mamão
Amor é a palavra passarinho disfarçada
De passarinho.
*
Pique-esconde
Um, dois, três salve todos
Gritei antes que Deus me visse.
*
Silogismo
Repartiremos primeiro a tristeza
E igualmente tristes
Criaremos o hábito
Depois virão os bens
Que socializaremos
Para que ninguém mais seja dono
De uma casa triste.
*
Poemas apanhados no chão na estrada do núcleo rural
I.
Nasceu a flor no homem
A chuva demora
A formiga corta
O mato abafa
A mão arranca a tentativa
De flor no homem.
II.
Monta um cavalo
Mesmo que seja o vento
Deixa-te conduzir
A toda brida
Não mais terás o peso de
Levar-te a ti mesmo
Serás finalmente corpo
De cavalo
E vento.
III.
Se acabarem os passarinhos
Como farás os poemas
Terás que falar apenas das árvores
Mas as árvores secam no
Abandono dos passarinhos
Os rios sem as árvores vão embora
As flores desistem
Acabaram os passarinhos.
IV.
Todas as formações de água
Que caem
Têm por predileção
As telhas
Desse encontro é que chove
O que habitamos é som.
V.
De grunhidos
Faremos um mundo
E com gritos –
Neste uso
De urros –
Linguagem
Gramática
E normas
Cultas.
VI.
Água, se lágrima
Perde-se
Da foz
Nasce
Sem
Fim.
VII.
Rio sem margens
É mar sem praia
Perde-se
No desmedido
Do desencontro
VIII.
Tudo que alcanço
É um cata-vento sem Deus
Um mundo mecânico
De pá e vento.
*
Retrato com abelha no cabelo
Escrevo o lado oposto de quem me lê
Nunca pensei ser compreendido
Senão por passarinhos e saguis
As frutas me ajudaram mais que os
Dicionários de verbos e regimes
E as gramáticas
As palavras com as quais me importo
Ciscam
O vento que escrevo está nas folhas
Dos buritis
Só faço versos que têm sopro
No coração.
♦
Marcelo Benini nasceu em 1970 na cidade de Cataguases, Minas Gerais. Publicou O Capim Sobre o Coleiro (edição do autor/2010); O Homem Interdito (Intermeios/2012); Fazenda de Cacos (Intermeios/2014); Currais Concretos (Intermeios/2018); Poemas do Núcleo Rural (Penalux/2022). Vive em uma comunidade rural próxima a Brasília/DF.
Estes 6 poemas fazem parte do livro “Poemas do Núcleo Rural” (Penalux/2022).