3 poemas do livro “Para quem está se afogando, crocodilo é tronco” de Wladimir Vaz Mourão
lérez-oiapoque
ii. o inferno, o furancho
taças, seios, cactus —
vinho avinagrado e chupitos, shots
e o chão congelando os nossos cus —
luz, rua, mãos e café — lérez resiste de pé.
o amolador desperta toda a rua, minha vizinha russa e sua cozinha macrobiótica, o adesivo de coração rasgado à chave, rebrote, lockdown, gata correndo pelo corredor, aspiradores de pó e de cocaína vibram as janelas, na rua juan bautista andrade, 67, um homem penteia o cabelo, pinta os lábios de cor carmim, tira o resto de tinta das unhas e olha como a mancha do vinho no tapete se torna imagem de guadalupe ou de são tomé: lérez resiste de pé, lérez tomba, tropica, mas segue de pé.
oiapoque é a cidade mais próxima
de algo de dentro é tormenta,
algo de fora é tormento — e se a torneira
pinga, pinga, pinga — minha fibra é carne
que come os gatos callejeros.
lérez, lérez,
turvo, turvo
peixes noturnos devoram, devoram, devoram.
cruzo a ponte — a ponte se entrecruza em mim —
e os asfaltos quentes queimam a solas dos nossos pés
lérez, insiste em ver o mundo ao revés.
*
iii. celta de vigo
o silêncio no meu bairro é uma senhora de estatura baixa,
cabelo curto e rugas —
ela está na farinha das chapatas,
no vinho-sangue do restaurante villa
nas cerejas, no verão,
e nas couves, no inverno,
na quitanda do casal de venezuelanos.
ela é a brisa fria do imenso bazar long,
na pequena avenida de a coruña,
está nas plantas na vitrine do bar a lareira
e no pó centenário nos livros de segunda mão
que carlos, o português, vende em frente ao pasarón
e em baixo de carmen — que viveu em andorra,
e hoje, o seu bar é um principado de bêbados —
onde a solidão é o objeto mais belo
ao lado do poster do celta de vigo,
com os jogadores da temporada 2004/05,
onde se intui: mais uma vez seguimos vivos na derrota.
*
dorset street
dorset street
das minhas veias
e das seringas abandonadas
nas cabines telefónicas
e dos lagos de vômitos
refletindo o néon do indian fast food.
dorset street
do bar no caufield hotel
da ternura de frank
e dos cigarros de haxixe
compartilhados com roberto
e dos seios septuagenários de joynie.
dorset street
de linha reta fora do plano
do rosto de brian
onde os sulcos imitam
o mapa dos rios da amazônia.
dorset street
do cretino tesco express
“thank for shopping at tesco,
please remember take your blue coin”
dos produtos vencidos
e das bananas passadas
na quitanda do tops.
dorset street
onde não se ergueram igrejas,
bendito seja wilde,
mas possui um salão paroquial
onde se oferece aula de yoga
por 5 euros.
dorset street
onde o amor é emoldurado
em uma madeira carcomida
prestes a se desmanchar:
“all we need is dioniso”.
dorset street
do sex shop com marcas de tiros —
dos nossos paus, bucetas e cus astrológicos
procurando vênus
por toda a noite,
por toda a noite.
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Wladimir Vaz Mourão Escreveu Para quem está se afogando, crocodilo é tronco (poesia, Urutau, 2023, livro semifinalista do prêmio Jabuti), Black shadow that overshades me (fotografia, Lost Alphabet, 2018), e gravou o disco Ixé (2022), com a banda Bujiwa. É fundador e editor da editora Urutau. Mora no Barreiro, margem sul, Portugal.