10 poemas do livro “Nuvem que passa devagar” de Carlos Campos

PRESSÁGIO
Seriam dias abertos
Pássaros soltos despertos
Sem a mácula das multidões
Sem a mágoa das razões
A terra em que nos deitamos
Seria húmida e fértil
Frutos e flores esperariam a colheita
Na serenidade de esperar
Uma carícia de fim de verão.
Mas tudo isto se afigura um sonho
Perante a voz da razão
Pré-fabricada
A realidade é um panorama
Pouco dado a devaneios
Até os jornais coincidem- nisso pelo menos coincidem
Em títulos de seca extrema.
Como tu e eu, a natureza
Já nem consegue chorar
O sonho cumpre o seu tempo, recluso
Nesta nuvem que passa devagar
*
SONATA INTRANQUILA
Esta é música de uma alma intranquila
No salão povoado pela tua ausência
A falta que me fazes
O que me fazes
E o meu olhar segue a folha
Que dança e contradança
Sem saber até quando
Conseguirá
Adiar o chão
Até os pássaros, indiferentes
Sabem que virá o Verão
Seremos nós tão diferentes
Como o sim e o não?
*
PARTES SIM
Partes sim.
Mas o que fica de ti não é o silêncio
mas a melodia que as tuas palavras mudas embalam
*
FIM DE TARDE
Aí a contemplar o movimento das ondas
ficas longamente
à espera do voo da última gaivota
do derradeiro raio de sol
como se o mar te chamasse
repetindo o teu nome no início da maré baixa
De pé, o teu corpo quieto
como um recorte, plasmado na praia
como uma antecipação da noite
como se a noite fosse tua
Quero chamar-te para te ver
e descubro que quem és tu quem me chama
e descubro que a noite só tarda
porque espera o nosso encontro
para anoitecer
É tão longa esta praia
tão longos os passos no areal até à água
nunca mais é tempo
nunca mais é tarde
e a tarde não anoitece…
Caminho para ti, passo a passo mais perto
do horizonte na linha dos teus ombros
onde o sol se põe
iluminando ainda a urgência do meu trilho
É de paz esta vontade de caminhar
para ti, à espera na linha do mar
aí, a contemplar o movimento das ondas
*
PALAVRAS DE TI
Quero que escrevas
que digas
que grites no papel
que desates o cordel
e consigas
tirar-me esta sede
de palavras
de ti
*
ENTARDECER
Sobram dias, faltam noites
Para que a tua voz me detenha
E a tua pele me acenda.
Sobram dias, faltam noites
Para que estes meus olhos
Se libertem desta venda.
A esperança dos dias
O silêncio das noites
São ventos, são murmúrios
Num solitário dizer.
Enquanto a nossa noite não vier
Enquanto não acontecer
Serão apenas mais madrugadas
Serenos dias de mãos dadas
À espera do entardecer.
*
OÁSIS
és o oásis no deserto que atravesso
és a música que amacia o meu silêncio
és o nada que me tem
és tudo o que peço
a alguém
és o fruto silvestre que alcanço
és a sede que não mato por querer
és o dia e a tarde que vem
és a noite, o sonho manso
também
e se um dia fores a minha esperança
a minha sina, a minha sorte
então seremos instantes
para além-vida, para além morte
amantes
*
AINDA
Não nos olhamos
mas ainda olhamos em frente
pela mesma janela
que abrimos um dia
O horizonte é o espelho
em que aparecemos juntos.
Não, não estamos de mãos dadas
Mas ficamos lado a lado
E de que falamos nos dias claros
entre gestos usados?
Não falamos de nós
porque na vida que falamos
todos os nós estão desatados.
Sem passos
que os passos são fuga
Sem beijos
que os beijos são despedidas
Sem promessas
que são apenas palavras
Sem abraços…
Não não estamos sós
Somos resistentes
sobreviventes
do grande mistério de nós
*
E QUANDO O VENTO NOS DEIXAR
E quando o vento nos deixar
saciados de esperança
Quando o luar
acordar manhã
Eis-nos de dia a partilhar
a carícia do sol.
*
DUAS VOGAIS
Apetecia-me um abraço brando
Uma carícia lenta
Um beijo longo.
Apetecia-me mais
Tu e eu duas vogais
Deitados num ditongo.
♦
Carlos Campos nasceu em Lisboa, em 1961. É casado, tem dois filhos e dois netos. Exerce a advocacia, a par com o jornalismo especializado e o ensino. Cultiva o gosto e o hábito da leitura e da escrita. Participa, sempre que pode, em encontros e tertúlias literárias e poéticas. É co-autor da página Quem Lê Sophia de Mello Breyner Andresen criada no Facebook por Lília Tavares. Participou com alguns poemas no livro “Rio de Doze Águas”, publicado em 2012, e em várias antologias de poesia. É autor de “Versos Traídos”, uma antologia de Poesia Traduzida, publicada em 2022 e “Nuvem que passa devagar” (2024)
“A poesia de Carlos Campos parte de si, para chamar e afastar, para chamar a intimidade e afastar a turba, para chamar a noite e afastar o dia, porque é assim que as emoções lhe arrepelam os sentidos, e lhe adensam o sentir poético”.
João Morgado, no Prefácio do livro.