Pouco leio sobre esse raro e precioso vínculo entre escritor e editor, aqui e ali, um filme (a saber, “O Mestro dos Gênios” de 2016), alguns comentários, críticas e conflitos aqui e lá, as figuras do escritor e do editor arriscando-se a desaparecer, a serem substituídas por máquinas, mecanismos de auto-publicação, editoras que funcionam como gráficas, abolido o laço afetivo tão essencial entre o criador e aquele que o traz em colaboração para o mundo, quiçá um “obstetra” a tirar das vísceras palavras, colocá-las a respirar com tinta fresca, dar capa e lombada ao que se ergue com necessidade de oxigénio.
Para um escritor, a figura de um editor amigo que trata o seu texto como algo digno de valor é o ponto de partida para um relacionamento de investidas criativas e aprofundamento literário, uma processo mútuo quando as partes assim enxergam. Portanto, qual não foi a minha alegria e gratidão ao conhecer o Francisco Guedes, editor da Húmus, para além de fundador de festivais, literato, culto, dono de uma alma essencialmente poética, ligado às artes de forma desinteressada, despojada, refletindo o que sinto como exercício diário nesse lidar com as palavras que correm-nos pelo sangue e permitem-nos existir em um patamar outro, espiritual, muitas vezes entre os anjos, em nados celestiais, sequer importando se as nuvens acinzentam-se no movimento aéreo e cultivam introspecção, sabe-se da presença do sol.
Pois foi em Matosinhos, em agosto passado que o meu filho Matias e eu almoçamos com o admirável Francisco Guedes e estou segura de que já nos conhecíamos, como sempre se passa com aqueles que comungam da poesia para ajoelhar-se perante a vida, os seus obstáculos, os seus êxtases, as surpresas. Fomos à Antiga Casa Castanheira e antes de acertarmos em definitivo o local, o Francisco escrevera-me: “Menu: rojões, filetes de pescada ou polvo com arroz de feijão, sardinhas assadas, peixes grelhados. Que dizes?” E o que poderia eu dizer se não aceitar esse convite terno e agora confessar que me falha a memória no tocante ao que comi sem, no entanto, deixar cair nos meus vales de esquecimento “a excelente conversa tida”, quando um assunto já logo se encaixava em outro, enquanto precisei de concentrar-me no timbre baixo da voz e a pronúncia local que me exige estar atenta, junto a minha mania de absorver todos os sinais, a solidão do interlocutor, as menções às perdas como a da da sua mulher, o inestimável amor pelo neto, as questões de saúde, o coração que reagia às friagens, acentuadas pelo clima do norte de Portugal. Eis os fios que tecem a teia da amizade, a incrível resistência que agora sustenta a tristeza da perda e levam os rastos por nova luminosidade, noutra dimensão.
Tínhamos, para o FLID, o Festival Literário do Douro acertado para maio próximo uma carona do Porto para Sabrosa e eu antecipava mais uma conversa enriquecedora, novos detalhes sobre Herberto Hélder, certamente a política americana, ítem de assuntos vários. Soube que o Francisco se reunira com mais dois amigos para ler o meu “Experimentações Poéticas – sobre Coleridge” publicado pela editora Húmus, contou-me que passaram algumas horas noturnas a operar sobre os textos, algo que jamais imaginaria. Semanas depois, enviou-me um email com suas impressões sobre o meu livro de contos “Colisões Bestiais Particula(res)” e como me honrou com a sua leitura e palavras, as quais guardarei com o devido apreço: “ Kátia, li as tuas Colisões que, escritas de uma forma pouco habitual, são um regalo para o leitor que gosta de desafios. Eu gosto, e gostei muito de caminhar na tua rua Cem que não sei onde se situa (Nova Iorque, Lisboa, S. Paulo) que importa, podia ser a minha se eu tivesse o talento para a reinventar. Diverti-me a ouvi-las, a andar com elas, a viver com elas mesmo que vivessem as situações mais absurdas, que interessa, se as escreves e descreves de forma a que o leitor as viva. Gostei, repito. Um beijo, Francisco”
Hoje pela manhã, trocava mensagens com o amigo e escritor Eduardo Affonso sobre como a ausência de “pândegos” como Ariano Suassuna empobrece o mundo dos que vêem no humor, um instrumento também literário e, nostalgicamente vamos intuindo um estreitamento, a imposição de circunstâncias que, passo a passo, ameaçam apagar as cores do interessante caleidoscópio pelo qual podemos vivenciar uma miríade de sensações na esfera da liberdade. No interregno, chegou a notícia da partida do amigo e editor Francisco, ao que sucedeu a conversa de como é dolorosa a perda e, ademais, a perda de alguém com quem se tenha um encontro marcado num futuro breve. Algo que me havia passado com a escritora baiana Sônia Coutinho anos atrás. Certamente, por mais apressado e arredio que seja o quotidiano, convence-me o destino de que se há de separar tempo para os encontros e as trocas em presença, escapar das armadilhas virtuais e manter íntegras as conexões, é o que fica de legado. Ao querido amigo e editor Francisco Guedes, dedico esse texto breve e singelo, agradecendo-o pela generosidade e o coração aberto, reservando a esperança de que não deixem de florescer tais relações felizes entre escritores e editores e que um grande “reset” universal traga à tona os livros de forma revolucionária e espantosa, a módico custo. Assim seja no percurso nosso da rua Cem.
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Kátia Bandeira de Mello é poeta, artista visual e escritora. Mora entre Coral Gables, Flórida e Lisboa.
Créditos da foto de Francisco Guedes: Correntes d’Escritas