A ÚLTIMA CRIANÇA PALESTINA
Uma a uma, embrulhadas
no alvo linho. As silentes
crianças Palestinas manchadas
de breu e venoso vinho. Cheiram metal
e doces despojos torrados. Ninguém
a prantear por elas, a fazer alarde.
Nem os anjos do ocaso
podem arcar com o peso.
Insoníacos anjos, em sobressalto
de luzes cintilantes, relâmpagos,
estrondos, rugidos de bom
bardeamentos caindo
sem trégua nos vãos das mãos
da noite, na feição de tição
da terra-mãe santa
ocupada.
Caindo das trevas
sobre o aluvião dos gritos
profusão de órgãos
desfigurados órfaos.
Os anjos além dos anjos
das últimas esferas das moradas
jazem desesperados
pois sabem que os corações humanos
estão ocupados por uma sombra
mascarada. Sombra com ares de claridade
até suas entranhas, roubando o real artigo,
essa neutra, inocente luz.
*
OFERENDAS DE YEMANJÁ
Depois da festa, a alcova da Casa Blanche
na Praia Formosa avista os grifos do mar atento.
O altar d’alcova engessado com dúzias de efígies
fêmeas: olhos inclinados, dentes de canjica branca
traje anil de caravela urticante. Nenhuma imagem
noir nem duas pardas. Emaranhados como cipó
numa árvore os fitilhos multicores, sobre a mesa
velas carmins gementes com suas bocas
de batons borrados. Cheiro latente de flor de plástico.
Búzios sacudidos na praia lavandas, braceletes
com chocalhos. Na alcova da velha casa,
de parapeito ao mar, erodidas almas
e a maré por peixes espreitada
peixes míopes de cinzas, seus dentes
em pentes grandes serrilhados
na praia as oferendas
boiam em vaivém sincrético
de flores nos balainhos de palha
a areia resplandece em micro fibras
de plástico, tocos de carvão
preservativos selados da folia
dum carnalval, rosários de Nossa Senhora
da Lácrima seringas de heroína,
jangadas de aves enfunam, gritam
Rainha de Sabá, Mère de L’Eau,
Mami Wata!
*
VAI CHOVER AÇÚCAR NA TUA XÍCARA
Quando nos encontrarmos de novo
em Xangai. Lá, dessa vez vai ser diferente…
Vai chover açúcar na tua xícara,
aquele cafezinho com uma
nuvenzinha de algodão
doce chovendo sobre a tua xícara.
Na rabeira da conversa
dir-te-ei: Olha, nao importa o quê,
tu sempre serás feliz. Esse entendimento
que pelejei tanto, chegou
pra mim numa idade avançada,
depois de ser capaz, de cor e salteado,
fazer minha atenção
ficar unificada ao nada
por algum tempo imobilizada,
e então, a mente parar
de se modificar em qualidades
de alegria ou lamento.
Espaço humilde
onde a memória não tem
nada a recordar senão
sua primordial luminosidade.
Lugar onde só há bondade
bem-estar, boa vontade.
Vamos nos despedir
do cafezinho assim, tudo se extinguindo
aos poucos alados de carinho,
sereno, calmo como a chuvinha doce
do cafezinho de Xangai.
La’.
*
AS PRESAS DO AMOR
O poeta ‘e leve, alado…
-Platão, Íon
As presas do Amor, eu as capitulei
após ter sido capturada pela medusa
da cisterna. Penosas são as presas
do amor. Nos agarram e nos tombam
aos penhascos subterrâneos
e `as aleias dos caminhos
sem reconciliação.
Reinos cujas governanças
pretendem unificar vidas
`a submundos de conformação.
Mazelas de rotinas modificando-se
para poderem existir. Até a realidade
da libertação desaparecer de nosso
coração descontente, o amor troca de presas.
Até sobrevivermos apenas como
um louva deus mântico.
As presas do Amor,
eu as capitulei
numa casa de poderes
da velha
Istambul.
*
GENTES DO MAR
Das Gentes do Mar me vem
esse alumbramento em querer
encontrar a plenitude
dos alcantis das águas.
Põe uma pedra sobre o mar!
Meus antigos não querem mais
que eu fale `a meia voz das histórias
quebradas de mar, do prestígio de se dormir
num convés e comer `a mesa
de anjos, ou da falta de alívio
do fogo de viver ancorada
em ganchos férreos num promontório
oculto sob a névoa baixa.
Põe uma pedra sobre o mar!
Esquece os faróis celestes
que piscam pra se apagar.
*
ADORAÇÃO AO NERVO VAGO
Ó verde Nervo Vago,
minha cédula monetária,
“In Vagus Nerve I trust”.
Tu te ergues reforçado
por mera atenção desinteressada.
Minha vantagem para ganhar a almejada
Morada e cédula de unidentidade.
Não importa onde eu vá, sempre retorno a Ti
Imaculado Nervo Vago, fiz de Ti minha base,
Meu green card,
alma gêmea, predestinada.
És minha reza e sala de milagres,
meu Santo de Afeição, a proa do meu Sagres.
Tuas virtudes nunca perecerão a mim
neste mundo de nervuras
por si nevrálgicas. Ai de mim,
nessa jornada, sem agulha
rastros de mar e sem mapa,
se acaso não tivesse
avistado no mar encruzilhado
esse magno Nervo Vago!
*
VEIAS SALGADAS
Esse peito de palissandro
tem um rio de corredeiras.
Mal se firmam desgrenhadas,
lançam-se aos desfiladeiros.
Rochas que batem águas
como um pilão de milho,
águas que lavam cruzes
caiadas nos penhascos,
torvelinhos de uma trilha.
Esse peito se meta morfo sereia
em gradis florais, sargaços, fura-buxos,
preces mouras, bestas de vagalhões e ilhas.
Expressa toda uma luz de si em alegorias
de peixes delicados boquiabertos atentos.
Peito relicáriode carapaça de
touro índico e tartaruga floriana
gravado no ouro de minas.
Me deixou um testamento de ventos
Monçônicos e grandes bilhas
de barro dos mundos bravios
d’água alinhavados na rota
de armadas caravelas.
*
AMORISCADO
Teu olhar Amoriscado.
Semi-flechado. De par
com teu riso ao meio,
indecifrável.
Tão cúmplices somos que me perco
pra te encontrar. Suspenso como o sonho
mais bonito que reverbera boa-nova
instante a instante em nossa vigília.
De tão calmo e claro
levitas em transe no
Nervo Vago. Nossa respiração
interior igualada.
Tesouro que leva ao último delírio
duma imagem, a derradeira imagem
a ser concebida feita de radiante brilho
indescritível luminância
filha dum natural
silêncio
e soberana
atentiva quietude.
*
GOA
Goa é um ditongo
decrescente
com rimas
sexagenárias
de preguiçosas
palavras portuguesas
Goa,
epístola de Lisboa.
Goa, berço do soneto
Camoniano 81.
Goa, minha redondilha
inacabada.
Fosca como English Poems
de Fernando Antônio Pessoa.
Goa e eu, um rendez-vous
De duas vogais.
A primeira estressada,
A segunda pacata,
Em repouso,
Sossegada.
Susegad.
सुसेगाद
*
CORVOS
Só nós dois podemos
nos entender a fundo.
Tu, seletivo bando de corvos, podes
transformar versos mudos
em comoventes vogais
do arrozal. Tu podes suportar
minha eclética multidão de dor
erguida em ovações sem rumo
pelos sons
nasais do mar.
♦
Rose Angelina Baptista é uma escritora luso-americana radicada na Flórida. Seus poemas foram publicados em várias revistas literárias: The Wallace Stevens Journal, Lit-Break, The Westchester Review, Gávea-Brown e outras antologias poéticas. Seu Chapbook de eco poemas inéditos “Rio D’Ais : Poems of the Indian River Lagoon” foi premiado com o gold Royal Palm Literary Award pela Florida Writers Association em 2003.