Agalopado I Lourival Holanda

Quadro 1
A velha folheia, mão trêmula, um álbum quase deserto. Ela, vazia de si mesma. Primeiras fotos de criança. Não há fotos convencionais para a memória que ali deflagra um filme. A velha: no rosto, um rictos à guisa de riso. Embriaguez – emoção e memória projetando uma luz morna por sobre aquilo que agora o tempo depôs.
Quadro 2
Dedos delgados, frios, passando páginas mortas. Frenesi – memória e imaginário vindos em socorro da dor que ali se adensa. E a velha, esvaziada de si, delira, no vazio das páginas. Fotos dos primeiros namoros da filha. Fotos da formatura futura. Das férias, tantas, por vir. A filha moça bonita, sadia, ridente, de encher de inveja. Orgulho de ter parido e cuidado daquela pujança.
Quadro 3
Maquinalmente, a velha passa, olhos cegos, mais e mais páginas assim. A janela apenas entreaberta, luz baça. Ordeiro, o quarto da filha fora. Longe. E ali. Há ausências densas, dessas que carregamos, vida afora, com seu peso de presença. De súbito, o movimento da memória se põe a reconstituir o dia duro: aquele quando, em Aldeia, a tia descuidando a vigilância, permitiu, pela insistência, só uma volta, uma voltazinha só, no cavalo de crina altiva e passo seguro. Mas, olhe: nunca se pôr perto da pista. Nunca.
Quadro 4
A velha avança, dedos tímidos, por sobre fotos nunca havidas. Álbum quase deserto. A morte veio a cavalo, num galope louco, segurando rédeas firmes. Um revirar do cavalo assustado, a surpresa, o carro colhe, de cheio, os 14 anos de Karina.
Quadro 5
A velha ouve variadas vezes a irmã dizer não se perdoar por nunca, antes, se ter permitido qualquer descuido. Ali, uma brecha aberta. A morte irrompe do motor: cavalos cegos, metálicos, contra um cavalo natural. Depois – é esse agora agônico continuado. Tempo suspenso. O céu cinza de quando um amor deserta.
Quadro 6
Poucas fotos daquela criança. A menina esperta a quem a vida era só promessa. Uma pose, ela olhando, altaneira, uns negociantes ao lado: que caraterzinho já ali se afirmava! Naquela tarde, voltando do mercado, ela ainda lembrou de telefonar à irmã: redobrar o cuidado. Que Karina não saia só, ela teima sempre em montar aquele cavalo corredor. Seria ocioso, a irmã sabe o risco, não permitiria. Ela então quase telefonou. Quase. O trágico de tudo é ser apenas quase. Quase somos felizes. Nas esquinas da vida certamente alguém quase nos percebeu. Quase faz ficar por um fio o pedaço de alegria que é o melhor quinhão de vida devido a cada um.
Quadro 7
Álbum quase deserto. Ainda. À espera do que haveria de vir: fotos dos namorados, da formatura, do casamento. A vida não havida. Não há para onde olhar. Aquele álbum parco – e o retraimento a esse espaço fechado. Aquela ausência a absorve, como areia movediça. Ela, em lúcido e paciente fervor desesperançado. Os amigos vieram ponderar, consolar. Os amigos: mas, que importa a razão vindo em socorro, se o coração se queda ali, aquietado. Ela inerme, inerte. Os outros todos têm a consistência de fantasmas. Um farol cego lança uma luz inútil quando o absurdo absorveu em nós a beleza do mundo. Noite: quando vozeia vazio o coração sem eco de qualquer correspondência. Noite total: não, nunca mais, parece, já nenhum vislumbre de esperança luz. Não se repõem perdas.
Quadro 8
Velha, velha: e a mãe tem 35 anos… E o olhar vago. Enquanto a imaginação vagueia. Um peregrinar desnorteado pelos claustros da alma onde a ferida, calada, consome o fio do tempo. Um esgaçar-se lento. Sem sequer suspiros. Quem cria silêncios os entende. Ela é alguém presa da memória – dura casa da dor. Viagem ao fundo do inferno para domar o Cérbero das lembranças. Vendo vir, secretadas, como lavas, as lágrimas. Ardendo, um chão morto. Na floresta tropical, grandes árvores morrem – e permanecem ali, de pé, apodrecendo aos poucos. Há vidas assim, ela o sabe. Secadas de toda seiva de alegria. Um mau fado atravessa nelas uma ausência grave como um gládio. Uma ausência funda nos fere em dado momento da vida e nos envelhece por dentro. Porque alguém, partindo, deserta em nós o verdor da vida – e nos exila.
Quadro 9
Lá embaixo, o mar que Karina amou. Aquela agora velha, velha, desvia os olhos. O mar já não marulha mais. O mar retira-se devagar. Fica só o silêncio de quando a praia deserta madruga dourada.
Quadro 10
Pelos corredores da casa, espaço abismal, o movimento repetitivo dos passos perdidos. Pelos labirintos da dor que ali se adensa. Agora: – um tempo sem história. Na rigidez da rotina, ela é alguém sufocando pedido de socorro. A vida em fuga. Os minutos: areia. O tempo correndo feroz. A vida que deve seguir, como abismação de um galope cego.
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Lourival Holanda vem do Sertão do Araripe, Pernambuco; fez filosofia em Paris – Universidade de Paris 8; doutor pela Universidade de São Paulo; professor titular da Universidade de Federal de Pernambuco; Presidente da Academia Pernambucana de Letras; Membro do Instituto Arqueológico Geográfico Histórico de Pernambuco. Publicou: Fato e Fábula (Manaus: EdUFAM, 1999); Sob o signo do silêncio. (SP: Edusp, 1992); Realidade inominada (Recife: Cepe, 2019); Um homem livre: Montaigne (Lisboa: Astrolábio, 2023).