“Hora Ínfima” I Mariana Artigas

O indivíduo e seu duplo animal nascem, vivem e morrem no mesmo momento. […].
Hanna Limulja.
Tenho pouco a dizer sobre as arestas metálicas do corpo, sei apenas que havia sido mulher. Inicialmente não tive consciência das moscas pairando sobre a minha tez límpida e febril, a geografia incerta dos insetos sempre me foi estranha. Uma certa manhã observei minha imagem diante do espelho, bigodes finíssimos brotavam das minhas bochechas. (Adeus renew, seja bem-vindo bigode chinês). O coração e o cabelo esbranquiçados, assim completamente-completamente. O que você sabe sobre o instantâneo na sala de estar? Apenas o fato de que eu havia ganho patas, focinho e rabo em tom amarronzado. Agradava-me muito a ideia de perseguir ratos pelos inúmeros cantos da casa com meus estrábicos e brilhantes olhos azuis. Agradava-me muito a ideia de ver o que há dentro dos ratos (de descobrir o gosto e o teor de sua natureza nua).
Confesso já não sentia a plenitude em ser mulher, porque ela estava e ainda está alocada na periferia do que se pode chamar de espírito. De repente “morrer era uma arte como qualquer outra” e eu me apoderava dela excepcionalmente bem. O riso do ar despia o meu próprio desespero. É fato, no começo a voz saía gravíssima, até transformar-se em um terrível miado-infeliz quase inaudível. Uma outra persona: Felina-sublimação ardente. A dissociação persiste, a dissociação me come e me bebe diariamente. Medo de ser uma, medo de ser duas, de ser e de estar múltipla e carcomida. De ser um duplo-inventado, medo de ser um duplo-inventado por toda a eternidade, de não sentir a plenitude do sabor de um rato. De engoli-lo por inteiro, tal qual uma serpente o faria.
Assim o verão ganha automaticamente um novo significado, pela primeira vez em vinte anos encontro-me completamente sozinha e desagradam-se tanto os espelhos como os reflexos. Frames coloridos já não faziam mais sentido, agora tal qual Jane Birkin eu sonhava em preto e branco, uma gata cujas memórias eram apenas sépia. Sim: minha linguagem-geométrica transformou-se em um simulacro de qualquer outra coisa que não consigo nomear, meu nome poderia ser qualquer um, meu gosto poderia ser qualquer um. Minha existência era agora um mero símbolo: Espelho reflexo e reflexão. Conheço de cor e salteado os cantos da casa, não há quem venha me dar alimento, os frames seguem embaralhados na minha cabeça (não sinto mais o sabor adocicado das laranjas, apenas, sinto apenas o gosto gélido dos metais).
Meu ímpeto era indefinido e movia-se como um deus morto, urubus e moscas do lado de fora cercando o quarto por todos os lados. Aqui somente há uma pequena caixa de madeira adornada com flores silvestres e não há convidados chegando (não há convidados chegando). A respiração era uma espécie de compromisso órfão com o divino, dádiva quase-quase inexistente. Lembro-me daquela vez que caímos de um penhasco no Marrocos e a cicatriz na minha escápula direita permanecia irretocável (ainda permanece). Você me alertava sobre os perigos de dormir com um espelho de corpo inteiro refletindo a cama, (atraía tragédias demais) você costumava dizer. Recordo-me por um momento com uma paixão-cega: você também guardava com carinho meus zines-coloridinhos escritos na minha saudosa olivetti lettera 82 esverdeada.
Não, não há água, não há comunicação possível. Neste momento, duas verdades coexistem: a eternidade circular e a pequenina caixa de madeira, para sempre o eterno ataúde. Meus nervos se embranquecem novamente: enxergo cores ao invés de palavras. Apenas o violeta, o verde, o azul e o amarelo fazem sentido e alcançam com certa eletricidade as minhas vísceras, os meus sonhos, meus delírios e os meus múltiplos corpos-poros. Naturalmente minhas unhas e orelhas continuam aumentando de tamanho. A inexatidão do meu corpo me causava um sobressalto sem fim. Agonia. Lua cheia. A maré sobe cada vez mais, sim: inúmeros e incontáveis vermes carcomendo meu corpo. Tudo foi muito rápido, já não escrevo pois não sou capaz de fazê-lo. É definitivamente a ruína, o fim da mulher metamorfoseada em gata, o fim de uma língua que nasce, morre e se reproduz sem um começo, sem um meio e sem um fim. E o meu reflexo? Dissociação e hora ínfima: é também o fim da demência senil. Restou-me aqui uma doce-amarga: sublimação felina.
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Mariana Artigas é curitibana. É atriz, formada pelo Colégio Estadual do Paraná e graduanda em Letras Português-Inglês pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Lançou seu primeiro livro de poemas, Ossatura sutil, em junho de 2022, pela editora Urutau. Além disso, seus poemas podem ser lidos em revistas literárias nacionais e internacionais.
Fotografia da autora por: Jackeline Prado