“El informe” de Remedios Zafra: Um Apelo à Reflexão sobre o Trabalho e a Vida
“Ando perdida entre as minhas máscaras. Em algum momento o mundo acelerou e, sem tempo para mudar-me, vou pondo-as uma em cima da outra, e outra em cima da outra, e sempre assim. O resultado é monstruoso, como um palhaço com todo o seu armário em cima”
Laura Bey, 2022
Remedios Zafra (Zuheros, Córdoba, 1973) é uma filósofa, ensaísta e professora universitária multipremiada que, com a poesia presente em todas as suas reflexões, afirma: “Há livros que escrevemos porque queremos partilhar histórias; se não os escrevêssemos, adoeceríamos”. O seu mais recente ensaio, “El informe” (Anagrama), que chegou às livrarias a 15 de maio, enquadra-se claramente nesta segunda categoria. Este ensaio desafia a natureza do trabalho como o centro das nossas vidas e dá voz ao que é inefável, dizendo basta à precariedade, à autoexploração, à inércia e à burocracia. É uma expressão da insuportabilidade de uma rotina laboral que aliena e limita, que, em vez de nos dignificar, nos mortifica.
O Trabalho como Centro das Nossas Vidas
Zafra questiona: “Quando deixámos de trabalhar para viver e começámos a viver para trabalhar?” Respondendo que o foco no trabalho, em detrimento da vida, começou quando a motivação associada a uma vocação ou a uma certa paixão foi substituída pela necessidade de resistir às pressões de cumprir prazos de forma compulsiva e produzir mais. Quando o trabalho passa a ser a prioridade, torna-se assim no centro das nossas vidas.
Nas últimas décadas, esta situação agravou-se com a vida condicionada pelos ecrãs. A promessa de escolher onde e quando trabalhar resultou numa realidade onde apenas o “onde” foi cumprido, enquanto o “quando” se dissolveu, pois cedemos todo o nosso tempo. A tecnologia normalizou a ideia de que todo o tempo é tempo disponível para o trabalho. A inércia está em sintonia com os tempos mediados por máquinas, preenchendo a nossa vida com tarefas e dificultando o distanciamento necessário para tomar consciência. Este despertar é essencial para ver a normalização de outra forma, muitas vezes motivado por um cansaço partilhado.
Zafra alerta para a “armadilha da autogestão”, que embeleza um tipo de trabalho focado em optimizar melhor o nosso tempo, mas que, na verdade, nos sobrecarrega com mais tarefas. Critica a digitalização actual, que, sob forças monetárias, demanda constantemente dados e tarefas, reduzindo a autonomia do indivíduo. Sobre a desconexão, Zafra argumenta que alguns dias de férias não são suficientes. A lógica capitalista carrega o tempo de descanso com actividades, mantendo o trabalho no centro da vida. A verdadeira desconexão implica entender que o trabalho, mesmo o que gostamos, não deve ser a nossa centralidade. Nascemos e o nosso tempo já está vendido de antemão: nesse sentido, a pensadora propõe que uma alternativa ao tecnocapitalismo passe por uma maior regulação e envolvimento da cidadania e dos governos. A digitalização, dominada pelo capital, não trouxe a igualdade esperada, em vez disso, reforçou desigualdades. A autora acrescenta que o esgotamento actual pode ser um motor para mudanças políticas significativas, levando-nos a reconsiderar e reformular as estruturas sociais e económicas que governam as nossas vidas.
A tecnologia normalizou a ideia de que todo
o tempo é tempo disponível para o trabalho.
Além disso, Zafra considera a inteligência artificial um campo que necessita de um controle rigoroso. Há mais de 20 anos que fornecemos dados para treinar inteligências artificiais que tomam a internet como uma representação do mundo. Os algoritmos resultantes não promovem a liberdade nem a construção de uma sociedade mais igualitária. A opacidade das inteligências artificiais e a sua apresentação como neutras mascaram a sua verdadeira natureza, que frequentemente reforça estereótipos e preconceitos. A autora sublinha a importância de marcar claramente o que é produzido por inteligência artificial, para podermos navegar num mundo onde a complexidade exige mais do que nunca um pensamento crítico.
Assim, a filósofa destaca que o tempo pessoal não é valorizado na vida contemporânea, constantemente mediada por agendas sobrecarregadas e pela incessante luz do dia virtual da internet. É essencial encontrar momentos de pausa, onde possamos reflectir e perceber que algo não está bem, tanto para nós como para a comunidade em geral. Este mal-estar pode servir como um catalisador para mudanças significativas.
Um Convite à Reflexão e à Mudança
“El informe” de Remedios Zafra é mais do que um simples ensaio; é um apelo urgente à reflexão e à acção em tempos em que o trabalho muitas vezes domina as nossas vidas. Com uma mistura de fervor crítico e sensibilidade poética, Zafra convida-nos a questionar a centralidade do trabalho nas nossas existências e a procurar uma vida mais equilibrada e significativa.
Ao explorarmos as páginas deste livro, confrontamo-nos com a inércia que nos prende num ciclo de produtividade incessante e exaustão. A escrita de Zafra ressoa como um apelo à resistência e à recuperação do nosso tempo próprio. Nestas páginas não apenas se diagnostica os males do tecnocapitalismo, mas também nos inspira a imaginar alternativas e a agir para construir um futuro mais justo e solidário.
Zafra questiona:
“Quando deixámos de trabalhar para viver
e começámos a viver para trabalhar?”
Para aqueles que se deixam tocar pela profundidade e pela sensibilidade deste livro, sugiro também a leitura de outras obras de Remedios Zafra: “Ojos y Capital” oferece uma análise perspicaz sobre a influência das tecnologias visuais no nosso modo de viver e pensar, enquanto “Despacio” nos convida a desacelerar e a reflectir sobre o ritmo frenético da vida moderna. Em “Frágiles”, Remedios Zafra explora a vulnerabilidade humana diante das estruturas de poder e da lógica mercantilista que permeia a nossa sociedade.
Cada um destes livros, assim como “El informe”, é um testemunho da habilidade única de Zafra de entrelaçar teoria e emoção, crítica social e lirismo. A sua obra desafia-nos a olhar para dentro de nós mesmos e a questionar o que aceitamos como normal e inexorável. Esta é, sem dúvida, uma voz essencial para o nosso tempo, uma autora que nos ajuda a ver o mundo com outros olhos e a descobrir novas formas de ser e de estar. Ler “El informe” é abrir-se a uma experiência transformadora, um convite à mudança e à renovação não só pessoal mas também colectiva.
Nota: “El Informe” está editado em castelhano, não havendo por ora uma versão em português.