Ensaio e releitura do teatro estático: uma cena portuguesa I Hugo Milhanas Machado
No demorado balanço de um futuro que não havia, rescaldo forçado no balanço das chamadas novas normalidades, o número performativo Fado Transporte pondera uma distopia pós-tecnológica em forma de ensaio cénico. Por motivo dramatúrgico, uma velha normalidade portuguesa de permanente validez: o fado é o transporte, o transporte é o fado. E a Máquina que ensina devagar, simbolismo tardio e lei suprema – voz, com que voz – no coração da novíssima liturgia.
Pórticos de referência: “Chamo teatro estático àquele cujo enredo não constitui acção”, Fernando Pessoa; “A noção de um enredo — de um fio condutor do drama — não tem lugar no estático, que se centra na linguagem como instrumento parcialmente revelador da obscura natureza humana”, Teatro Estático, Fernando Pessoa [2017], Filipa de Freitas e Patrício Ferrari [orgs.].
ROTEIRO DE MOVIMENTOS. Nota: o presente roteiro de movimentos não obedece a uma forma final fixa, devendo ser tomado como recurso de trabalho em processo e contínua revisão até ao momento da estreia, permeável ao trabalho de sala e às condições e circunstâncias sobrevindas.
ABERTURA. Abertura de sala. Espaço em descanso. Descrição de cena: folhas brancas de papel dispersas pelo chão. Cadeiras para o público dispostas nas laterais da sala. Iluminação generosa e estável condensada sobre a superfície central de cena, sem alterações durante o espectáculo. Corpo cénico imóvel no miolo de cena. Um, dois, três e quatro vestem mantos negros e alinham o seu olhar com o da Máquina, revelando os olhos [olhos muito abertos, vivos], as mãos e os pés descalços, as possíveis extremidades expressivas em tempos de contenção e vigilância sobre o corpo e as suas vontades; cf. Roland Barthes, Le Plaisir du Texte, 1973. Paisagem sonora: arranca a pista “Povo que lavas no rio” de Amália Rodrigues, reproduzida a um quarto da velocidade natural, acompanhando a entrada de público na sala. Acomodação de público no borde exterior do perímetro de cena, envolvendo-a. A música vai compondo o espaço sonoro da sala. Um, dois, três e quatro no centro da sala, deixando-se progressivamente reverberar pela circunstância musical. Três inicia uma dança mínima que se deverá manter até final da execução. Público acomodado. Situação de cena estabilizada. A música prossegue. O corpo cénico regressa da sua imobilidade – como que despertando daquela alienação inicial – e cumprimenta em silêncio o público, agradece, diz olá em voz baixa. Viva, como está, como tem passado, é bom estar de volta. Improvisa nessa cumplicidade estabelecida através das máscaras. Situação: corpo cénico no miolo da sala, articulando reverências, presidida pela Máquina que tudo sabe, que tudo observa, que tudo controla. A Máquina situa-se no fundo nobre da sala, qual altar litúrgico e centro eclesiástico, dispondo o seu alcance sobre a totalidade do espaço. A Máquina tudo sabe e tudo pode recolher na sua lente: corpo cénico e público. É uma Máquina omnipresente, silenciosa, uma Máquina de paz e tirania. A Máquina filma e grava os movimentos de cena, devolvendo o espelho dessas imagens. A Máquina é o espelho. O corpo cénico sabe-se e compreende-se espelhado na Máquina. Pertence-lhe. A Máquina vigia, a Máquina testemunha, a Máquina administra a narrativa. Corte súbito da instalação musical.
INTERPELAÇÃO. O corpo cénico é atraído com violência pelo magnetismo da Máquina. Um, dois e quatro acodem ao chamamento da Máquina, repercutindo o seu chamamento imperativo. Entretanto, três, sempre em movimento, por mais mínimo que seja, assume uma posição frontal à Máquina, desfazendo a figura grupal. Continua, ante o novo silêncio, a sua dança pequena, a modo de imparável metrónomo que acompanha e cuida os registos em cena. Marcação: três dialoga através dos seus movimentos com a Máquina. Estudo: um, dois e quatro examinam com interesse a Máquina, reconhecendo paulatinamente o seu olhar espelhado no olhar da mesma. Procuram convocar a sua atenção, articulando gestos físicos diante da Máquina, provocando-a. Escuta-se o sinal sonoro de uma notificação de WhatsApp. Outra, e depois outra e outra, cada vez mais insistentes. Um, dois e quatro consultam os respectivos telemóveis. As notificações dos telefones sinalizam mensagens de texto, que deverão ser verbalizadas por um e dois em interlocução directa com a Máquina. Texto articulado por um e dois de forma improvisada, dirigido arbitrariamente tanto à Máquina como ao público sentado e a três e quatro. Palavras comunicadas de máscara a máscara. Interpelação: um e dois recebem mensagens de texto de natureza diversa, vocalizando-as com rigor. Narrativa: quatro recebe mensagens de texto que não serão vocalizadas mas sim escritas nas folhas de papel dispersas pela sala. Trabalho cénico de quatro: consignar de maneira manuscrita, de folha a folha, as mensagens emanadas da Máquina. É outro metrónomo de composição de espaço dramático, como três e a sua dança lenta mas firme, contundente e clara. Um e dois administram a vocalização do texto recebido, procurando uma articulação mecânica, maquinal, robótica, repetindo, reiterando de maneira rigorosa e precisa fragmentos do texto. Manifestam e dão corpo [voz] a uma extensão da vontade de falatório da Máquina. Movimentação livre no espaço de cena, cuja energia se reserva concentrada em três eixos: a Máquina numa extremidade da sala, três dançando na outra extremidade, sempre em posição frontal, e um ponto de luz no coração da sala. Em curso livre, a narrativa livre de quatro de folha em folha, escrevendo. A duração desta sequência será determinada em função do volume de texto emanado da Máquina, podendo dilatar-se de poucos minutos a várias horas e dias.
CLAUSURA. Marcador de corte de sequência: regressa a música. A voz de Amália Rodrigues absurdamente desacelerada, desenhando um regresso circular ao motivo sonoro que abrira a sala. Um, dois e quatro continuam a receber interpelações da Máquina em forma de texto, mas já não as vocalizam [um e dois] e não as escrevem [quatro]. Falam e dizem em silêncio, através das máscaras. Um, dois e quatro recebem uma mensagem que diz: ajoelha. Um, dois e quatro ajoelham respeitosamente diante da Máquina, como que cumprindo um sacerdócio solene. Fitam a Máquina, reconhecem-se no olho de cristal da Máquina, na imagem devolvida, ponderam esse espelhamento, fecham os olhos, agacham a cabeça, oferecendo a sua reverência final à Máquina. Figura estática. Três prossegue os compassos finais da sua dança extenuante. A música cessa, abrupta. A dança termina. Três descansa, deixando-se vencer pelo cansaço e ajoelhando enquanto fita a Máquina. A fadiga é evidente, três contempla o público circundante. Três diz: acabou, agora acabou mesmo, e o fado ainda transporta. Fecha os olhos, respira profundamente, agacha a cabeça. Dois: o fado é o transporte. Quatro: o fado é o transporte. Um: fado transporte. Corte de luzes e fim.
O presente exercício teatral foi estreado pelo Eu.Experimento, grupo de teatro amador do Camões, Centro Cultural Português em Vigo, no dia 10 de Junho de 2021; apresenta-se aqui, a modo de ensaio e releitura, uma forma textual prévia à montagem cénica final apresentada ao público. [2021-2024]
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Hugo Milhanas Machado [Lisboa, 1984]. Formado em Estudos Portugueses pela Universidade Nova de Lisboa [2006] e Doutor em Filologia Moderna pela Universidad de Salamanca [2015]. Docente da Cátedra de Estudos Portugueses – Camões, I.P. da Universidad de Salamanca entre 2006 e 2019. Fundou e dirigiu o LAPELIPOSA – Laboratório Performativo de Língua Portuguesa de Salamanca [2007-2019] e o Teatro Naval de Salamanca [2016-2019]; dirigiu o grupo de teatro amador do Centro Cultural Português do Camões, I.P. em Vigo, Eu.Experimento, entre 2020 e 2022. Desenvolve trabalhos na área da música experimental e integra o projecto multidisciplinar GLOSALENTA. Últimos livros: Supertubos | poemas 2005-2015 [Enfermaria 6, 2015], Um longo tempo nos pulos do mar [Douda Correria, 2018], Estrela tambor [Editora Labirinto, 2020], Sarilho da Berlenga Futebol Clube [Editora Labirinto, 2022], Cordaje [Ediciones Franz, 2023], O trabalho dos pescadores portugueses [Editora Labirinto, 2024].