“O futuro sitiado para dentro dos limites do que acreditamos viável” I Poesia de Sofia Ferrés
[Imaginação 1]
Anseio ingênuo, reimaginar o mundo
Um sonho indulgente,
uma batalha ativa
contra um aparato que diz
seremos repetição do que já é.
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[Imaginação 1]
Anseio ingênuo, reimaginar o mundo
Um sonho indulgente,
uma batalha ativa
contra um aparato que diz
seremos repetição do que já é.
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Pouco leio sobre esse raro e precioso vínculo entre escritor e editor, aqui e ali, um filme (a saber, “O Mestro dos Gênios” de 2016), alguns comentários, críticas e conflitos aqui e lá, as figuras do escritor e do editor arriscando-se a desaparecer, a serem substituídas por máquinas, mecanismos de auto-publicação, editoras que funcionam como gráficas, abolido o laço afetivo tão essencial entre o criador e aquele que o traz em colaboração para o mundo, quiçá um “obstetra” a tirar das vísceras palavras, colocá-las a respirar com tinta fresca, dar capa e lombada ao que se ergue com necessidade de oxigénio.
Para um escritor, a figura de um editor amigo que trata o seu texto como algo digno de valor é o ponto de partida para um relacionamento de investidas criativas e aprofundamento literário, uma processo mútuo quando as partes assim enxergam. Portanto, qual não foi a minha alegria e gratidão ao conhecer o Francisco Guedes, editor da Húmus, para além de fundador de festivais, literato, culto, dono de uma alma essencialmente poética, ligado às artes de forma desinteressada, despojada, refletindo o que sinto como exercício diário nesse lidar com as palavras que correm-nos pelo sangue e permitem-nos existir em um patamar outro, espiritual, muitas vezes entre os anjos, em nados celestiais, sequer importando se as nuvens acinzentam-se no movimento aéreo e cultivam introspecção, sabe-se da presença do sol.
Pois foi em Matosinhos, em agosto passado que o meu filho Matias e eu almoçamos com o admirável Francisco Guedes e estou segura de que já nos conhecíamos, como sempre se passa com aqueles que comungam da poesia para ajoelhar-se perante a vida, os seus obstáculos, os seus êxtases, as surpresas. Fomos à Antiga Casa Castanheira e antes de acertarmos em definitivo o local, o Francisco escrevera-me: “Menu: rojões, filetes de pescada ou polvo com arroz de feijão, sardinhas assadas, peixes grelhados. Que dizes?” E o que poderia eu dizer se não aceitar esse convite terno e agora confessar que me falha a memória no tocante ao que comi sem, no entanto, deixar cair nos meus vales de esquecimento “a excelente conversa tida”, quando um assunto já logo se encaixava em outro, enquanto precisei de concentrar-me no timbre baixo da voz e a pronúncia local que me exige estar atenta, junto a minha mania de absorver todos os sinais, a solidão do interlocutor, as menções às perdas como a da da sua mulher, o inestimável amor pelo neto, as questões de saúde, o coração que reagia às friagens, acentuadas pelo clima do norte de Portugal. Eis os fios que tecem a teia da amizade, a incrível resistência que agora sustenta a tristeza da perda e levam os rastos por nova luminosidade, noutra dimensão.
Tínhamos, para o FLID, o Festival Literário do Douro acertado para maio próximo uma carona do Porto para Sabrosa e eu antecipava mais uma conversa enriquecedora, novos detalhes sobre Herberto Hélder, certamente a política americana, ítem de assuntos vários. Soube que o Francisco se reunira com mais dois amigos para ler o meu “Experimentações Poéticas – sobre Coleridge” publicado pela editora Húmus, contou-me que passaram algumas horas noturnas a operar sobre os textos, algo que jamais imaginaria. Semanas depois, enviou-me um email com suas impressões sobre o meu livro de contos “Colisões Bestiais Particula(res)” e como me honrou com a sua leitura e palavras, as quais guardarei com o devido apreço: “ Kátia, li as tuas Colisões que, escritas de uma forma pouco habitual, são um regalo para o leitor que gosta de desafios. Eu gosto, e gostei muito de caminhar na tua rua Cem que não sei onde se situa (Nova Iorque, Lisboa, S. Paulo) que importa, podia ser a minha se eu tivesse o talento para a reinventar. Diverti-me a ouvi-las, a andar com elas, a viver com elas mesmo que vivessem as situações mais absurdas, que interessa, se as escreves e descreves de forma a que o leitor as viva. Gostei, repito. Um beijo, Francisco”
Hoje pela manhã, trocava mensagens com o amigo e escritor Eduardo Affonso sobre como a ausência de “pândegos” como Ariano Suassuna empobrece o mundo dos que vêem no humor, um instrumento também literário e, nostalgicamente vamos intuindo um estreitamento, a imposição de circunstâncias que, passo a passo, ameaçam apagar as cores do interessante caleidoscópio pelo qual podemos vivenciar uma miríade de sensações na esfera da liberdade. No interregno, chegou a notícia da partida do amigo e editor Francisco, ao que sucedeu a conversa de como é dolorosa a perda e, ademais, a perda de alguém com quem se tenha um encontro marcado num futuro breve. Algo que me havia passado com a escritora baiana Sônia Coutinho anos atrás. Certamente, por mais apressado e arredio que seja o quotidiano, convence-me o destino de que se há de separar tempo para os encontros e as trocas em presença, escapar das armadilhas virtuais e manter íntegras as conexões, é o que fica de legado. Ao querido amigo e editor Francisco Guedes, dedico esse texto breve e singelo, agradecendo-o pela generosidade e o coração aberto, reservando a esperança de que não deixem de florescer tais relações felizes entre escritores e editores e que um grande “reset” universal traga à tona os livros de forma revolucionária e espantosa, a módico custo. Assim seja no percurso nosso da rua Cem.
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Kátia Bandeira de Mello é poeta, artista visual e escritora. Mora entre Coral Gables, Flórida e Lisboa.
Créditos da foto de Francisco Guedes: Correntes d’Escritas
PRESSÁGIO
Seriam dias abertos
Pássaros soltos despertos
Sem a mácula das multidões
Sem a mágoa das razões
A terra em que nos deitamos
Seria húmida e fértil
Frutos e flores esperariam a colheita
Na serenidade de esperar
Uma carícia de fim de verão.
Mas tudo isto se afigura um sonho
Perante a voz da razão
Pré-fabricada
A realidade é um panorama
Pouco dado a devaneios
Até os jornais coincidem- nisso pelo menos coincidem
Em títulos de seca extrema.
Como tu e eu, a natureza
Já nem consegue chorar
O sonho cumpre o seu tempo, recluso
Nesta nuvem que passa devagar
*
SONATA INTRANQUILA
Esta é música de uma alma intranquila
No salão povoado pela tua ausência
A falta que me fazes
O que me fazes
E o meu olhar segue a folha
Que dança e contradança
Sem saber até quando
Conseguirá
Adiar o chão
Até os pássaros, indiferentes
Sabem que virá o Verão
Seremos nós tão diferentes
Como o sim e o não?
*
PARTES SIM
Partes sim.
Mas o que fica de ti não é o silêncio
mas a melodia que as tuas palavras mudas embalam
*
FIM DE TARDE
Aí a contemplar o movimento das ondas
ficas longamente
à espera do voo da última gaivota
do derradeiro raio de sol
como se o mar te chamasse
repetindo o teu nome no início da maré baixa
De pé, o teu corpo quieto
como um recorte, plasmado na praia
como uma antecipação da noite
como se a noite fosse tua
Quero chamar-te para te ver
e descubro que quem és tu quem me chama
e descubro que a noite só tarda
porque espera o nosso encontro
para anoitecer
É tão longa esta praia
tão longos os passos no areal até à água
nunca mais é tempo
nunca mais é tarde
e a tarde não anoitece…
Caminho para ti, passo a passo mais perto
do horizonte na linha dos teus ombros
onde o sol se põe
iluminando ainda a urgência do meu trilho
É de paz esta vontade de caminhar
para ti, à espera na linha do mar
aí, a contemplar o movimento das ondas
*
PALAVRAS DE TI
Quero que escrevas
que digas
que grites no papel
que desates o cordel
e consigas
tirar-me esta sede
de palavras
de ti
*
ENTARDECER
Sobram dias, faltam noites
Para que a tua voz me detenha
E a tua pele me acenda.
Sobram dias, faltam noites
Para que estes meus olhos
Se libertem desta venda.
A esperança dos dias
O silêncio das noites
São ventos, são murmúrios
Num solitário dizer.
Enquanto a nossa noite não vier
Enquanto não acontecer
Serão apenas mais madrugadas
Serenos dias de mãos dadas
À espera do entardecer.
*
OÁSIS
és o oásis no deserto que atravesso
és a música que amacia o meu silêncio
és o nada que me tem
és tudo o que peço
a alguém
és o fruto silvestre que alcanço
és a sede que não mato por querer
és o dia e a tarde que vem
és a noite, o sonho manso
também
e se um dia fores a minha esperança
a minha sina, a minha sorte
então seremos instantes
para além-vida, para além morte
amantes
*
AINDA
Não nos olhamos
mas ainda olhamos em frente
pela mesma janela
que abrimos um dia
O horizonte é o espelho
em que aparecemos juntos.
Não, não estamos de mãos dadas
Mas ficamos lado a lado
E de que falamos nos dias claros
entre gestos usados?
Não falamos de nós
porque na vida que falamos
todos os nós estão desatados.
Sem passos
que os passos são fuga
Sem beijos
que os beijos são despedidas
Sem promessas
que são apenas palavras
Sem abraços…
Não não estamos sós
Somos resistentes
sobreviventes
do grande mistério de nós
*
E QUANDO O VENTO NOS DEIXAR
E quando o vento nos deixar
saciados de esperança
Quando o luar
acordar manhã
Eis-nos de dia a partilhar
a carícia do sol.
*
DUAS VOGAIS
Apetecia-me um abraço brando
Uma carícia lenta
Um beijo longo.
Apetecia-me mais
Tu e eu duas vogais
Deitados num ditongo.
♦
Carlos Campos nasceu em Lisboa, em 1961. É casado, tem dois filhos e dois netos. Exerce a advocacia, a par com o jornalismo especializado e o ensino. Cultiva o gosto e o hábito da leitura e da escrita. Participa, sempre que pode, em encontros e tertúlias literárias e poéticas. É co-autor da página Quem Lê Sophia de Mello Breyner Andresen criada no Facebook por Lília Tavares. Participou com alguns poemas no livro “Rio de Doze Águas”, publicado em 2012, e em várias antologias de poesia. É autor de “Versos Traídos”, uma antologia de Poesia Traduzida, publicada em 2022 e “Nuvem que passa devagar” (2024)
“A poesia de Carlos Campos parte de si, para chamar e afastar, para chamar a intimidade e afastar a turba, para chamar a noite e afastar o dia, porque é assim que as emoções lhe arrepelam os sentidos, e lhe adensam o sentir poético”.
João Morgado, no Prefácio do livro.
O Festival de Poesia do Condado, em Salvaterra do Minho, chega ao marco histórico de 50 anos, consolidando-se como um dos eventos literários mais combativos e emblemáticos da Galiza. Meio século depois, o festival continua a ser um bastião de resistência cultural, reunindo gerações de poetas, músicos e artistas que, ano após ano, transformam este encontro num palco de liberdade e afectos.
Para celebrar esta história de meio século, foi lançada uma antologia de poesia que reúne vozes essenciais da literatura galega e do mundo lusófono. Esta colectânea é uma homenagem ao espírito do festival, que desde 1981 se tem afirmado como um motor de reivindicação linguística, social e política.
Entre os poetas que compõem esta edição especial, e da qual tenho a honra de fazer parte, encontram-se Ana Fernández Melón, Andreia Costas, Antom Fortes, Tiago Alves Costa, Branca Trigo, Marga do Val, Nieves Neira, Rui Mangas, Sechu Sende e José Viale Moutinho. Cada um, com a sua voz, reflecte a pluralidade e a força de uma poesia que se propaga, contamina e se torna num acto de criação colectiva e força transformadora.
Desde a sua fundação, o Festival do Condado tem sido um espaço de interseção entre arte e militância. Em tempos de repressão, tornou-se um refúgio para a expressão poética em galego, resistindo às tentativas de apagamento cultural. Ao longo das décadas, ampliou sua influência, cruzando fronteiras e estabelecendo pontes entre diferentes territórios da lusofonia.
Mais do que um evento literário, o Festival do Condado é um movimento,um grito colectivo que ecoa entre as muralhas de Salvaterra e atravessa a Galiza inteira, reafirmando que a poesia não é apenas estética, mas também revolução — contínua, insurgente, irreversível.
A poesia galega sempre caminhou de mãos dadas com a rebeldia e a resistência, e o Festival do Condado é a sua prova viva. Agora, ao comemorar 50 anos, o festival não só celebra o passado, mas também projecta o futuro, mantendo-se como um farol para as novas gerações de criadores e para todos aqueles que veem na palavra um instrumento de transformação.
A antologia agora lançada é uma marca indissociável desta trajectória. Uma colectânea que fixa na memória a força de uma poesia que resiste, reivindica e nunca se rende. Porque na Galiza, a poesia sempre foi sinônimo de luta e, ao mesmo tempo, expressão universal da condição humana.
O indivíduo e seu duplo animal nascem, vivem e morrem no mesmo momento. […].
Hanna Limulja.
Tenho pouco a dizer sobre as arestas metálicas do corpo, sei apenas que havia sido mulher. Inicialmente não tive consciência das moscas pairando sobre a minha tez límpida e febril, a geografia incerta dos insetos sempre me foi estranha. Uma certa manhã observei minha imagem diante do espelho, bigodes finíssimos brotavam das minhas bochechas. (Adeus renew, seja bem-vindo bigode chinês). O coração e o cabelo esbranquiçados, assim completamente-completamente. O que você sabe sobre o instantâneo na sala de estar? Apenas o fato de que eu havia ganho patas, focinho e rabo em tom amarronzado. Agradava-me muito a ideia de perseguir ratos pelos inúmeros cantos da casa com meus estrábicos e brilhantes olhos azuis. Agradava-me muito a ideia de ver o que há dentro dos ratos (de descobrir o gosto e o teor de sua natureza nua).
Confesso já não sentia a plenitude em ser mulher, porque ela estava e ainda está alocada na periferia do que se pode chamar de espírito. De repente “morrer era uma arte como qualquer outra” e eu me apoderava dela excepcionalmente bem. O riso do ar despia o meu próprio desespero. É fato, no começo a voz saía gravíssima, até transformar-se em um terrível miado-infeliz quase inaudível. Uma outra persona: Felina-sublimação ardente. A dissociação persiste, a dissociação me come e me bebe diariamente. Medo de ser uma, medo de ser duas, de ser e de estar múltipla e carcomida. De ser um duplo-inventado, medo de ser um duplo-inventado por toda a eternidade, de não sentir a plenitude do sabor de um rato. De engoli-lo por inteiro, tal qual uma serpente o faria.
Assim o verão ganha automaticamente um novo significado, pela primeira vez em vinte anos encontro-me completamente sozinha e desagradam-se tanto os espelhos como os reflexos. Frames coloridos já não faziam mais sentido, agora tal qual Jane Birkin eu sonhava em preto e branco, uma gata cujas memórias eram apenas sépia. Sim: minha linguagem-geométrica transformou-se em um simulacro de qualquer outra coisa que não consigo nomear, meu nome poderia ser qualquer um, meu gosto poderia ser qualquer um. Minha existência era agora um mero símbolo: Espelho reflexo e reflexão. Conheço de cor e salteado os cantos da casa, não há quem venha me dar alimento, os frames seguem embaralhados na minha cabeça (não sinto mais o sabor adocicado das laranjas, apenas, sinto apenas o gosto gélido dos metais).
Meu ímpeto era indefinido e movia-se como um deus morto, urubus e moscas do lado de fora cercando o quarto por todos os lados. Aqui somente há uma pequena caixa de madeira adornada com flores silvestres e não há convidados chegando (não há convidados chegando). A respiração era uma espécie de compromisso órfão com o divino, dádiva quase-quase inexistente. Lembro-me daquela vez que caímos de um penhasco no Marrocos e a cicatriz na minha escápula direita permanecia irretocável (ainda permanece). Você me alertava sobre os perigos de dormir com um espelho de corpo inteiro refletindo a cama, (atraía tragédias demais) você costumava dizer. Recordo-me por um momento com uma paixão-cega: você também guardava com carinho meus zines-coloridinhos escritos na minha saudosa olivetti lettera 82 esverdeada.
Não, não há água, não há comunicação possível. Neste momento, duas verdades coexistem: a eternidade circular e a pequenina caixa de madeira, para sempre o eterno ataúde. Meus nervos se embranquecem novamente: enxergo cores ao invés de palavras. Apenas o violeta, o verde, o azul e o amarelo fazem sentido e alcançam com certa eletricidade as minhas vísceras, os meus sonhos, meus delírios e os meus múltiplos corpos-poros. Naturalmente minhas unhas e orelhas continuam aumentando de tamanho. A inexatidão do meu corpo me causava um sobressalto sem fim. Agonia. Lua cheia. A maré sobe cada vez mais, sim: inúmeros e incontáveis vermes carcomendo meu corpo. Tudo foi muito rápido, já não escrevo pois não sou capaz de fazê-lo. É definitivamente a ruína, o fim da mulher metamorfoseada em gata, o fim de uma língua que nasce, morre e se reproduz sem um começo, sem um meio e sem um fim. E o meu reflexo? Dissociação e hora ínfima: é também o fim da demência senil. Restou-me aqui uma doce-amarga: sublimação felina.
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Mariana Artigas é curitibana. É atriz, formada pelo Colégio Estadual do Paraná e graduanda em Letras Português-Inglês pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Lançou seu primeiro livro de poemas, Ossatura sutil, em junho de 2022, pela editora Urutau. Além disso, seus poemas podem ser lidos em revistas literárias nacionais e internacionais.
Fotografia da autora por: Jackeline Prado
Abraham Pérez é um autor que entende a escrita não apenas como um ofício, mas como um modo de compreensão do mundo. Nascido em Lugo, em 1990, o seu percurso transita entre a literatura e a filosofia, duas áreas que, no seu processo criativo, se entrelaçam de forma indissociável. Para ele, a identidade é algo em constante construção, uma passagem pela qual atravessam leituras, imagens, sons e experiências. Nesta entrevista, mergulhamos no seu pensamento sobre o fazer literário, a importância do estudo rigoroso e a necessidade de um olhar crítico sobre a contemporaneidade. A sua visão da criação artística passa por um compromisso com a forma, um apelo à reflexão e uma resistência à aceleração que marca o nosso tempo. Entre poesia e narrativa, entre a exigência formal e a multiplicidade de leituras, Abraham Pérez constrói uma obra que desafia rótulos e convoca o leitor para uma experiência estética profunda e consciente. Falamos aqui sobre o seu processo de escrita, as influências filosóficas no seu trabalho e os desafios da criação no mundo atual. Uma conversa que nos convida a pensar a literatura como um espaço de liberdade, rigor e questionamento.
Quem é Abraham Pérez?
Ben, coido que esta debería ser a resposta máis sinxela de dar, porén semella, sen coñecer o que vén por diante, das máis complexas. Penso que todo ten un contexto e os datos, imos dicir oficiais, din que nacín en Lugo no ano 1990. En calquera caso, creo que a figura delimitada é o menos relevante. Considero que somos algo semellante a unha pasaxe: un espazo polo que pasan moitas cousas e, en consecuencia, iso tan precario que denominamos identidade, entendido coma un construción definida e rematada, non é máis que o conxunto das lecturas, visualizacións, escoitas e relacións sociais (todo isto nun amplo senso) que establecemos durante a vida. Sen esas coordenadas e sen o contexto no que se posibilitan, coido, sería falsear unha realidade. Somos algo aberto e en constante elaboración. Unha especie de coexistencia de presente, pasado e futuro.
Como a poesia e as artes, por exemplo… Que é o te achega a essa faceta criativa?
Se a lectura é, para min, un modo de estar no mundo, orixe do coñecemento e, claro, do estudo, a escrita é un modo de comprensión do mundo, de aclararmo (ou, cando menos, intentalo) sabendo que sempre está abocada ao fracaso.
Como levas a cabo o teu trabalho criativo?
O estudo é a parte central do traballo. Sen estudo rigoroso non habería posibilidade de tentar facer unha obra coherente. No meu caso, as distintas pezas, os distintos textos, son froito de moito traballo formal. Certo é que non penso se vou escribir un conxunto de poemas ou un libro de carácter máis narrativo, senón que o que acontece é que grazas a ese estudo e da preocupación arquitectónica, comezan a xurdir vestixios a partir dos cales comezo a traballar. E, desde aí, que é un proceso longo, empezo a puír, a recortar, a eliminar cousas que sobran, até, como digo sempre, que a obra comeza a facer un escorzo. O momento da reescrita, ou mellor, da depuración é o traballo que máis tempo me leva. Durante o mesmo, chega un punto de equilibrio entre a forma e o contido que xa posibilita que camiñe por si soa, é necesario abandonala. E é aí onde se manifesta a ambivalencia, as distintas capas de lectura, o punto de humor –soterrado- e burla.
Outra cousa é o ritmo de publicación. No meu caso, non adoitan cadrar. Ás veces publícanse varias obras en relativo pouco tempo, mais a súa existencia é froito de moitos anos de traballo. Sucede que, ás veces, xúntanse e parece que un produce, no lugar de crear.
A leitura é um modo de estar no mundo;
a escrita, uma tentativa de compreendê-lo.
Que papel ocupa a filosofia na tua vida e no teu processo criador?
A miña formación académica está directamente vencella á filosofía. Tal e como me refería anteriormente ao proceso de estudo para a creación literaria, coido, que o podo ligar de xeito directo á necesidade de comprensión, nun sentido amplo e non instrumentalizado, para darlle á vida máis intensidade. Para min, que entendo que todo é un proceso, non hai separación entre, imos dicir, esferas vitais, senón que, pola contra, todas manifestan aspectos sobre o mesmo, aínda que sexan vividos de xeito diferente.
En consecuencia, o proceso creador está traspasado por certas preocupacións, poderiamos dicir nun ton excesivamente académico, de índole filosófica. De feito, se na preocupación existente entre atopar un equilibrio entre forma e fondo (sendo a forma absolutamente central), considero que a miña obra, cada texto, é un conxunto de superposición de capas que permiten entrar neles desde distintas arestas. Esixen, xa que logo, unha lectura pausada e si, tamén, reflexiva. Case podería dicir que a miña poesía é para ler (en silencio), mais que para recitar; e a creación de carácter máis narrativo, encaixa cunha construción en capas que ensamblan distintos niveis de lectura. De aí que se precisen lecturas formadas e informadas.
Uma maneira bastante unificada de compreender o proceso criativo… A tua maneira de entender o mundo de hoje é coincidente com esses critérios? Que perspectiva tens?
A tarefa formal é absolutamente central, como digo. Mais, creo que é importante nun proceso creativo reflexionar sobre a relación que se establece coa obra, en múltiples dimensións. Este feito, que non se aprecia na obra en si, cando menos de primeiras, é importante para darlle coherencia ao que un está a facer. Parece que na época actual, entre outras cousas, a velocidade e a debilitación dos conceptos lévanos a unha redución do que somos a puras subxectividades consumistas (nisto consiste para algúns o concepto de liberdade), aparentemente bastante caprichosas (aínda que non tanto). E o que sucede é que todo é un tecido, e un precisa de ferramentas (estudo, por exemplo) para abrir camiños de comprensión. A carencia disto que sinalo, ás veces, trasládase á capacidade que temos para abordar as obras. É necesario reler a tradición e actualizala. Non podo escribir coma alguén de comezos de século (tampouco o pretendo, malia que haxa temas que han ser abordados porque como humanos tócannos unha e outra vez), principalmente porque non vivimos nas mesmas coordenadas temporais. Isto que quere dicir que, en ocasións, interésame, para crear, observar, estudar e analizar elementos da realidade para logo poder saber, no caso que decida utilizalos, por exemplo para crear unha voz, ou un conxunto de voces, nunha narración, como construír a nivel formal o texto. A arquitectura, pero tamén a linguaxe, da cal emana a lingua e os xogos de linguaxe, e as posíbeis diferenzas ou semellanzas nos elementos propios da obra, que debe aparecer de xeito explícito, pero tamén que se debe dicir de xeito implícito. Parece que os elementos presentes no devir epocal estragan a capacidade de lectura e analítica, e desvirtúase o texto. Claro que haberá quen apele á independencia do lector e da lectora: por suposto! Pero axuda a corrixir este solipsismo un estudo que posibilite superar ese peche e enlazar todos os aspectos nunha rede que dea riqueza á recepción: aquí está a verdadeira liberdade e independencia na estética da recepción. O texto, a obra é independente, pero está nun tecido moito máis complexo do que se cre, e reducilo a un conxunto de emocións ou, mellor, de pseudoemocións preconfiguradas (por modas ou por rebelións contra o teoricamente establecido), conduce en ocasións á distorsión e o seu debilitamento.
Uma maneira profunda e independente de trabalhar no essencial, pois. Há aí também uma concepção do mundo que nos permita saír desta convulsão que nos rodeia?
Coido que todas as posibilidades pasan por aspectos que se insiran nunha rede de elementos. Tocar un aspecto de xeito illado, polo xeral, só serve para trazar un perfil que afasta máis ca achega á comprensión. Evidentemente, calquera aproximación que eu poida facer neste espazo non pode ser máis que precaria e provisoria. Malia todo, coido que é necesario repensar aspectos que posibiliten delimiten os problemas esenciais, se cadra coma un repregamento cara ao ontolóxico; e, posibelmente, combinando un xogo dialéctico con quiasmos.
En calquera caso, o estudo, o pensamento crítico e a arte son combinacións interesantes para trazar posíbeis liñas dun futuro aberto.
Somos algo aberto e em constante elaboração.
Uma espécie de coexistência de presente, passado e futuro.
Que outras facetas, criativas e/ou vitais, chamam a tua atenção para serem transitadas por ti num futuro mais ou menos próximo?
A Arte forma parte da miña vida, xa non só coma, poderíase dicir, creador, senón coma humano. En consecuencia, o feito de que a vida dun sexa unha pasaxe, un espazo polo que transitan as obras, dalgún modo axuda a crear unha obra propia que, non é nin máis nin menos, que a propia vida. Agora ben, referido a desenvolver unha τέχνη, coido que, malia o meu interese polo cinema ou as artes plásticas, non haberá nada, nun principio, que poida ser comunicado.
Que projectos tens, seja no imediato ou num futuro mais longínquo no teu percurso criador, nas suas diversas vertentes?
Neste intre estamos a preparar a tradución ao portugués de Gaivotas manchadas de petróleo, un texto que, malia o seu risco e a súa particularidade, estame a dar moitísimas satisfaccións. Debería estar na rúa ao longo deste primeiro semestre do 2025.
E, por último, para onde consideras que estamos indo colectivamente, tanto em Galiza como no mundo?
Ben, coido que estamos nunha situación complexa, poderiamos dicir, dialecticamente contraditoria, de xeito aparente. Por unha banda, o devir do sistema económico, como algo veloz e triturador, marca unha velocidade de vertixe que aboca, semella, a uns tempos non moi esperanzadores. Semella que vivimos nunha época chea de crises: non só as económicas (as que necesita o propio capitalismo para sobrevivir), senón a unha enerxética, climática, ecolóxica e política. Porén, todas elas, ao meu modo de ver, engarzan no plano económico. Todo este rodopío no que parece que vivimos inmersos imposibilita repensar a nosa vida, de aí que anteriormente insistira na necesidade do detemento e do estudo para unha comprensión máis… humana. Aínda así, toda esta velocidade, no fondo, semella non existir, precisamente porque non somos capaces de pensar e propoñer outros modelos existenciais que limiten (xa non digo que poñan en cuestión) o statu quo. Deste xeito, estamos detidos nun inmobilismo case absoluto. As esferas vitais foron mesturándose, até tal punto que a existencia semella que só ten sentido se estamos a producir. Esa diferenza entre o tempo de produción e o tempo libre (non falemos da perversión que é o concepto “tempo de ocio”) case non existe. Fíxate que na lingua, nas expresións cotiás, esa lingua economicista que traspasa todas as fronteiras é un síntoma: a xente xestiona os seus cartos, pero tamén as relacións afectivas, o lixo ou as emocións. Ao meu modo de ver todo se converte nunha holografía, nun simulacro. Habitamos imaxes cegas de corpos exhaustos (de aí a moda de certas liñas de pensamento de baixa intensidade que falan dunha sociedade do cansazo. A súa crítica é un modo máis de representación dentro desta lóxica): un mundo que valora as experiencias sempre que sexan cuantificábeis. Todo queda reducido a unha vulgar imaxe. Dá o mesmo que sexa unha fotografía dun xantar pendurada nas redes sociais ou ao carón dunha fiestra con Nova Iorque ao fondo. Todo este modelo de subxectivación redúcese a uns modos de individuación onde o real só pode estar prefixado en termos económicos e recuberta co papel celofán dunha pseudo obra de arte. Construímos imaxes a través de máis imaxes que non sabemos interpretar. Constrúese a ficción dunha liberdade que só significa unha liberdade de escolla entre as opcións presentes no mercado, de aí que calquera cuestión teña que estar o suficientemente adaptada a un criterio de masa (porque paulatinamente a nosa psique foi moldeada. Non preciso a ninguén que me obrigue a facer tal cousa porque o meu desexo xa foi canalizado), esa baixa intensidade que marca este modelo ontopolítico. E todo o que non poida estar presente nesa escolla, directamente non ten sentido. Xogando co título de Carver, de que estamos a falar cando falamos de ética?
Estão já brancos os ramos e não há flores na floreira. Perpétuas roxas, a voz sibilina de uma ave. A encruzilhada de ventos que se contradizem. Eu, quase nada. A foice e o seu gesto no vazio da seara. Haverá um Outono a exclamar sussurrando o adormecimento do calor, dos ribeiros e das folhas. Eu continuo só na ermida solitária, desfiando teares de sombras, labor algum. Tecendo bouquets de nuvens e fastios. Chove copiosamente no hemisfério da saudade, há um lenço preso na fivela do amanhã. O futuro adoeceu, passa ao largo num navio mercante, assim como o horizonte, intangível. Barco sem leme nem remos. A cal e as telhas narram as mãos de onde vieram. Há um pêndulo suspenso no meu peito, perdi as horas, fiz erguer uma espécie de relógio de sol. É meio-dia para a tua vinda, que não chova neste desassossego.
GOLPE DE PAPEL
Há pó onde a lâmina se corta. Dentes de marfim, sorriso emudecido. À superfície rasam águas não potáveis. Há livros que cortam, o papel é um gume lancinante e o conteúdo um revólver mortífero, há palavras que descem as escadas, as avenidas e ascendem ao vento que navalha as nuvens. De onde vem este golpe? Esta biópsia indesejada? As torneiras de água corrente evaporam as horas, sangram e lavam, perfumam de colónia, traços de sabão contidos em reminiscências longínquas. Há frases que levam à asfixia, à morte. A morte deita-se na pureza da alma que se ausenta. Riscar a dor, riscar a insuficiência de paladar. Há pó junto aos livros e uma redenção entre nós. Sinto a lâmina nos lábios, mordo. Morro. Estou sã assim despida,alojada na resina do silêncio, nunca o ar foi tão puro.
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É como a manhã tarde barriga cheia do peixe em escamas no mirante das águas inclinadas. Torno a levar o cântaro à sua sede saciar o tempo das enxadas (in)quietas sob um sol de ria alagando os pomares que vi na infância. É como uma saia pintada de desgostos, fina hulha escorrendo no rosto. A nave transporta o corredor efémero da caldeira. Inicialmente um sopro, um esboço até ser onda onde o naufrágio embate. É como tarde ser manhã a desembocar nos corpos vadios, na sanguessuga dos dias que apenas se aproximam para afastarem-se e um elo fulgente brasonando o coração como gado. Quente. O ferro na cama até queperplexa a lua surja. Há um ninho funesto ao som do realejo. Perco-me nos anzóis adormecidos por intervalos. E a flauta esgrima o solo do violino, compressas frias para o derrame de um som de harpa. Caçam-me as horas sem que haja um único espelho onde reflectir o orvalho. A montanha sangra os passos de quem regressa. O meu voo é descendente, insonoro, volátil, ladrão com bocca chiusa. Não há fertilidade nestas palavras. Oceano súbito até desabar sobre ti.
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SEDE DE TÂNTALO
Miseráveis, não sabem como não gastar o coração, não sabem de que vento depende a chuva, intrusão aflita. Miseráveis, não sabem como decifrar a minha voz, esquerdo o flanco da minha empatia. Nunca me vi antes de um espelho onde o reflexo era água e maresia. Não nos conhecemos, libertamo-nos pela fadiga, a alma cresce braviamente nos baldios. Não só pela pele e pelo focinho se conhece o gado. Miseráveis os que não dançam na lama, os que não sujam os pés porque o pó ofende. O pó é a ruína que nos espera adiante. Uma candeia que fique a iluminar a eternidade prometida. Vou reler os teus versos, aqueles que não li. A minha voz cresce como erva trepadeira, cítaras de água transbordam luz, miseráveis os que não cresceram comigo, os que se adiantaram ao perigo que é estar vivo. Tenho sempre o coração nas mãos quando te ausentas, o olhar pausado na manhã em que não regressas, sou uma sílaba apenas, o mar, a paz, o eco, a mãe. Miseráveis vindos do encantamento das águas, são rodos de areias a flutuar nas minhas veias e a angústia mais tarde ecoa nas redes sulfúreas de um domador de sonhos, pescador de letras sem âncora ou cais, miseráveis os que escrevem sem rasgar o infinito. Miseráveis os que ficaram na extremidade de uma estrela já defunta há anos luz, numa estrada inconcebível e na força inimaginável de Atlas. Cheira a tristeza nos teus ombros e somos um sopro na miséria dos ossos a pedir repouso.
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Leonora Rosado, nasceu no concelho de Sintra em 1971. Desde muito cedo revela interesse quer pela leitura assim como pela escrita, poesia, sobretudo. A escrita é a sede que ávida tenta saciar incessantemente em eterno retorno. Insaciedade de Tântalo. Em vertigem constante. Tem publicados doze livros de poesia, Dias Horizontais Noites Assim (2012, Nu Limbo Edições), O Ocaso e as Horas (2013, Nu Limbo Edições), Argila (2014, Nu Limbo Edições), A Voz Subcutânea (2015, Nu Limbo Edições), Impurezas (2016, Temas Originais), Ruptura (2016, Nu Limbo Edições), A Fenda no Sangue ( 2017, Editora Licorne) , O Livro Do Sopro (2017, Editora Licorne) e Fóssil De Água (Corpos Editora, 2018), Trauma (2018, Editora Licorne), Há Ténues Sinais De Cristal Nos Espelhos (2019, Edições Sem Nome, textos de prosa poética) e Pranto De Coral, prosa poética (Editora Licorne, 2019).
A revista ‘Quiasmo’ nasce como um projeto de vanguarda e com uma forte orientação afetiva galego-lusófona, fazendo pontes com Barcelona e a Catalunha. Ergue-se como um ecossistema de conhecimento destinado a promover e divulgar a arte, literatura e ciência.
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