Estão já brancos os ramos e não há flores na floreira. Perpétuas roxas, a voz sibilina de uma ave. A encruzilhada de ventos que se contradizem. Eu, quase nada. A foice e o seu gesto no vazio da seara. Haverá um Outono a exclamar sussurrando o adormecimento do calor, dos ribeiros e das folhas. Eu continuo só na ermida solitária, desfiando teares de sombras, labor algum. Tecendo bouquets de nuvens e fastios. Chove copiosamente no hemisfério da saudade, há um lenço preso na fivela do amanhã. O futuro adoeceu, passa ao largo num navio mercante, assim como o horizonte, intangível. Barco sem leme nem remos. A cal e as telhas narram as mãos de onde vieram. Há um pêndulo suspenso no meu peito, perdi as horas, fiz erguer uma espécie de relógio de sol. É meio-dia para a tua vinda, que não chova neste desassossego.
GOLPE DE PAPEL
Há pó onde a lâmina se corta. Dentes de marfim, sorriso emudecido. À superfície rasam águas não potáveis. Há livros que cortam, o papel é um gume lancinante e o conteúdo um revólver mortífero, há palavras que descem as escadas, as avenidas e ascendem ao vento que navalha as nuvens. De onde vem este golpe? Esta biópsia indesejada? As torneiras de água corrente evaporam as horas, sangram e lavam, perfumam de colónia, traços de sabão contidos em reminiscências longínquas. Há frases que levam à asfixia, à morte. A morte deita-se na pureza da alma que se ausenta. Riscar a dor, riscar a insuficiência de paladar. Há pó junto aos livros e uma redenção entre nós. Sinto a lâmina nos lábios, mordo. Morro. Estou sã assim despida,alojada na resina do silêncio, nunca o ar foi tão puro.
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É como a manhã tarde barriga cheia do peixe em escamas no mirante das águas inclinadas. Torno a levar o cântaro à sua sede saciar o tempo das enxadas (in)quietas sob um sol de ria alagando os pomares que vi na infância. É como uma saia pintada de desgostos, fina hulha escorrendo no rosto. A nave transporta o corredor efémero da caldeira. Inicialmente um sopro, um esboço até ser onda onde o naufrágio embate. É como tarde ser manhã a desembocar nos corpos vadios, na sanguessuga dos dias que apenas se aproximam para afastarem-se e um elo fulgente brasonando o coração como gado. Quente. O ferro na cama até queperplexa a lua surja. Há um ninho funesto ao som do realejo. Perco-me nos anzóis adormecidos por intervalos. E a flauta esgrima o solo do violino, compressas frias para o derrame de um som de harpa. Caçam-me as horas sem que haja um único espelho onde reflectir o orvalho. A montanha sangra os passos de quem regressa. O meu voo é descendente, insonoro, volátil, ladrão com bocca chiusa. Não há fertilidade nestas palavras. Oceano súbito até desabar sobre ti.
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SEDE DE TÂNTALO
Miseráveis, não sabem como não gastar o coração, não sabem de que vento depende a chuva, intrusão aflita. Miseráveis, não sabem como decifrar a minha voz, esquerdo o flanco da minha empatia. Nunca me vi antes de um espelho onde o reflexo era água e maresia. Não nos conhecemos, libertamo-nos pela fadiga, a alma cresce braviamente nos baldios. Não só pela pele e pelo focinho se conhece o gado. Miseráveis os que não dançam na lama, os que não sujam os pés porque o pó ofende. O pó é a ruína que nos espera adiante. Uma candeia que fique a iluminar a eternidade prometida. Vou reler os teus versos, aqueles que não li. A minha voz cresce como erva trepadeira, cítaras de água transbordam luz, miseráveis os que não cresceram comigo, os que se adiantaram ao perigo que é estar vivo. Tenho sempre o coração nas mãos quando te ausentas, o olhar pausado na manhã em que não regressas, sou uma sílaba apenas, o mar, a paz, o eco, a mãe. Miseráveis vindos do encantamento das águas, são rodos de areias a flutuar nas minhas veias e a angústia mais tarde ecoa nas redes sulfúreas de um domador de sonhos, pescador de letras sem âncora ou cais, miseráveis os que escrevem sem rasgar o infinito. Miseráveis os que ficaram na extremidade de uma estrela já defunta há anos luz, numa estrada inconcebível e na força inimaginável de Atlas. Cheira a tristeza nos teus ombros e somos um sopro na miséria dos ossos a pedir repouso.
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Leonora Rosado, nasceu no concelho de Sintra em 1971. Desde muito cedo revela interesse quer pela leitura assim como pela escrita, poesia, sobretudo. A escrita é a sede que ávida tenta saciar incessantemente em eterno retorno. Insaciedade de Tântalo. Em vertigem constante. Tem publicados doze livros de poesia, Dias Horizontais Noites Assim (2012, Nu Limbo Edições), O Ocaso e as Horas (2013, Nu Limbo Edições), Argila (2014, Nu Limbo Edições), A Voz Subcutânea (2015, Nu Limbo Edições), Impurezas (2016, Temas Originais), Ruptura (2016, Nu Limbo Edições), A Fenda no Sangue ( 2017, Editora Licorne) , O Livro Do Sopro (2017, Editora Licorne) e Fóssil De Água (Corpos Editora, 2018), Trauma (2018, Editora Licorne), Há Ténues Sinais De Cristal Nos Espelhos (2019, Edições Sem Nome, textos de prosa poética) e Pranto De Coral, prosa poética (Editora Licorne, 2019).