A linguagem como nó e claridade — Poesia de Miriam Reyes

Hoje na Quiasmo publicamos poemas do livro “Com”, de Miriam Reyes, distinguida recentemente com o Prémio Nacional de Poesia.
Nestes textos, a linguagem não é ornamento mas matéria viva. O nó, a febre, o golpe de mar, a boca cheia de água: imagens que não descrevem, mas encarnam. A palavra nasce no limite da respiração e, ao mesmo tempo que se oferece, põe em risco quem a pronuncia.
A poesia de Miriam Reyes ergue-se na tensão entre fragilidade e força, entre flutuar e afundar. É escrita que se aproxima da nudez — radical e luminosa, exposta ao desequilíbrio, aberta à ferida. Uma poesia que não procura consolo, mas a vertigem de se manter de pé sobre o abismo.
Cada verso abre uma fissura onde a carne se confunde com pensamento, onde a consciência se mede em horizontes, onde a escuridão se assume como parte inseparável da luz. O corpo treme, mastiga, ressuscita. A linguagem insiste: mesmo quando tudo parece submergir, ainda é possível nomear, ainda é possível respirar através da palavra.
(Com, edição portuguesa da Officium Lectionis, tradução para português por José Rui Teixeira. Edição original: La Bella Varsovia, 2024)
♦
nua como uma fita te ofereço
a escuridão do nó
ofereço-te a escuridão do nó
com o que me sujeito a mim mesma
– ao mastro de mim mesma –
contra as perturbações do equilíbrio
esqueci muito
mas recordo que disse
a escuridão é minha e viverei com ambas enquanto me restar luz
disse-o com a boca cheia de água
há anos e anos
quando não era exatamente esta que agora se oferece
nem era completamente outra
disse-o a uma pessoa e a outra pessoa
e a nenhuma pessoa ou a mim mesma
dentro da escuridão do nó
com a boca cheia de água
por um golpe de mar
a golpes de mar se desancoram as palavras da boca
que diz
vejo com consciência de limite e de horizonte
não sem frustração e maravilha
sei que tenho febre porque sinto a pele a arder
do costado da carne
sob a consciência
onde mergulho e me introduzo a mim mesma
onde mastigo a possibilidade de flutuar
e a de afundar-me
de um ao outro lado da boca
até tragá-las.
*
desnuda como una cinta te ofrezco
la oscuridad del nudo
te ofrezco la oscuridad del nudo
con el que me sujeto a mí misma
–al mástil de mí misma–
contra las perturbaciones del equilibrio
he olvidado mucho
pero recuerdo que dije
la oscuridad es mía y viviré con ambas mientras me quede luz
lo dije con la boca llena de agua
hace años y años
cuando no era exactamente esta que ahora se ofrece
ni era completamente otra
lo dije a una persona y a otra persona
y a ninguna persona o a mí misma
dentro de la oscuridad del nudo
con la boca llena de agua
por un golpe de mar
a golpes de mar se desanclan las palabras de la boca
que dice
veo con consciencia de límite y de horizonte
no sin frustración y maravilla
sé que tengo fiebre porque siento la piel ardiendo
del costado de la carne
bajo la consciencia
donde buceo y me introduzco a mí misma
donde mastico la posibilidad de flotar
y la de hundirme
de uno a otro lado de la boca
hasta tragarlas.
*
ensaiamos formas de remendar
o que poderia sofrer rasgo
detido no vão da porta
treme o corpo pressentindo
do ponto que atravessaria o anzol
goteia vaticina e desmaia o sangue
*
ensayamos formas de remendar
lo que podría sufrir desgarro
detenido en el vano de la puerta
tiembla el cuerpo presintiendo
del punto que atravesaría el anzuelo
gotea vaticina y desmaya la sangre
*
tudo o que em mim agonizava
ressuscita no teu apetite
tudo o que em ti agonizava
*
todo lo que en mí agonizaba
resucita en tu apetito
todo lo que en ti agonizaba
*
umbral ou carne
pálpebra ou asa
interrogação ou fruto
o que é que abres
quando me abres?
*
umbral o carne
párpado o ala
interrogación o fruto
¿qué es lo que abres
cuando me abres?
*
algo não ocorre ou permanece
bloqueado
alguém interrompe o processo
considera-se a existência
de uma relação direta entre o medo
e o fracasso da modulação
*
algo no ocurre o permanece
bloqueado
alguien interrumpe el proceso
se considera la existencia
de una relación directa entre el miedo
y el fracaso de la modulación
*
alguém quer mais ou quer menos de algo
o mofo da insatisfação aflora
*
alguien quiere más o quiere menos de algo
el moho de la insatisfacción aflora
*
a pessoa outra queixa-se
– tantos cravos na sua carne tantos suplícios –
considera levar o seu aqui a outro lugar
o seu sítio a outro terreno
*
la persona otra se queja
–tantos clavos en su carne tantos suplicios–
considera llevarse su aquí a otro lugar
su sitio a otro terreno
♦
Nasceu em Ourense e, aos oito anos, emigrou com os pais para Caracas. Em 2001 publicou Espejo negro (DVD). Com o seu segundo livro de poemas, Bella durmiente, foi finalista do Prémio Hiperión (2004). Seguiram-se os títulos: Desalojos (Hiperión, 2008), Haz lo que te digo (Bartleby, 2015), Prensado en frío (Malasangre, 2016) e Sardiña (Chan da pólvora, 2018), todos reunidos no volume Extraña manera de estar viva (Mixtura, 2022). O seu título mais recente é Con (La Bella Varsovia, 2024). A sua obra foi incluída em numerosas antologias nacionais e internacionais e encontra-se traduzida em mais de meia dúzia de línguas.
Desde 2001 experimenta com a escrita audiovisual e o recital multimédia. Apresentou os seus vídeo-recitais em festivais de poesia, spoken word e artes cénicas.
https://www.instagram.com/insta.miriamreyes/
https://www.facebook.com/miriamreyespoesia/