As últimas férias de verão foram passadas em Vila do Conde. Acordar com o cheiro a sargaço, passear ao lado da praia, comprar flores e fruta no mercado municipal, perder-me num pequeno Bosque Habitado a caminho da Galeria de Arte Cinemática Solar, no qual os livros também dão frutos.
Numa das visitas, sempre estendidas pela conversa com a Isabel, chamou-me à atenção o “Compêndio de Botânica” da autoria de Seomara da Costa Primo, uma edição de 1940, editada e ilustrada pela própria autora. SC, como assinava cada uma das suas ilustrações, segundo indicado na primeira página do manual, foi “professora de liceu e assistente de botânica, encarregada de Curso na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa”. Sendo consciente da invisibilidade em livros de estudo de referentes femininos e as suas contribuições para o avanço no conhecimento científico (menos de 7,5% – dados de um estudo realizado em Espanha pela investigadora López-Navajas), fiquei no mínimo curiosa por saber quem era a tal SC.
Pioneira
Seomara Buttuller da Costa Primo, nasceu em Lisboa a 1895, foi a primeira mulher a doutorar-se em Portugal na área das Ciências Naturais (Botânica) – com a Prof. Doutora Branca Edmée Marques e o Prof. Doutor Ricardo Jorge como dois dos membros de um júri que, segundo os jornais da época, “conduziu um ataque cerrado, quase impiedoso, como é de uso sobre a candidata”. Ainda que algumas das presentes, recordam o episódio com uma tensão superior ao “habitual” -. Mais tarde prestou provas como professora catedrática, ainda que a nomeação para este cargo é desconhecida (Mogarro, 2017). Estes feitos constituem dados históricos que nada carecem de importância, tendo em conta que actualmente, Portugal é líder mundialmente, no que respeita ao número de mulheres estudantes em áreas CTEAM (Ciência, Tecnologia, Engenharia, Arte & Desenho, e Matemáticas, 57%, OCDE), sendo que as mulheres representam 52,9% das pessoas com o grau de doutoramento no país (Relatório She Figures 2021).
Fonte: Seomara da Costa Primo na sua casa na Amadora. Núcleo Museológico Seomara da Costa Primo (2023)
Em paralelo com as suas contribuições científicas como investigadora, acumulou cargos de docente do ensino liceal e universitários e fez parte do órgão gestor da Federação das Associações dos Professores dos Liceus Portugueses, tendo representando a mesma em diferentes eventos internacionais.
Seomara destacou-se por ser muito mais do que “a primeira mulher em…”. Transgressora, activista e “tecedora” de conexões interdisciplinares (ciência, educação e arte), defendia uma experiência práctica aliada à investigadora, como também a integração de diferentes formas de pensamento – crítico, progressista e feminista – para o crescimento individual e colectivo.
“… o ensino primário que dará a cultura geral (física, moral e intelectual) indispensável a todos os cidadãos… o ensino secundário, que dará uma cultura geral… pretende desenvolver o espírito, os sentidos, o carácter, a mentalidade e o físico, adaptando-os à vida… o ensino superior – destinado aos que se preparam para uma posição que exige uma cultura científica intensa –“ Primo, 1930
“Ela sabia, como ninguém, aflorar um tema e deixar que a aluna reflectisse sobre ele; e, consoante a sua aptidão ou interesses, fizesse perguntas e procurasse aprofundar o assunto… Depois, o resto do tempo passava-se em diálogo, método este que despertava um muito maior interesse entre as alunas.” Telles Antunes, 1986
“… transformação dos métodos de ensino em métodos activos, que tendem a favorecer a actividade pessoal da criança, procurando rodeá-la das mesmas condições que encontrará na vida, levando-a a resolver problemas em que é colocada, dentro das suas forças e da sua mentalidade, o que é certo é que também nos nossos programas muito pouco se cuida dos problemas da vida” Primo, 1930
“… Foi uma Professora a quem realmente muito fiquei a dever, que me empurrou para as Ciências, que me trazia problemas e exercícios e dizia “estes dois são para a Antera” e depois dava outros problemas diferentes às minhas colegas…” Valeriana de Seabra, 2006
“… A cultura nunca fará mal às raparigas. Poderá resultar melhor até, porque é a mulher, de facto quem exerce mais influência no espírito dos filhos. Fomentar, pois, a sua cultura, elevar a sua mentalidade, é pedra-de-toque de um país verdadeiramente civilizado.” Primo, 1943
Arte, Cinema, Educação e Ciência
A partir dos anos 30 até aos 60, foi autora de uma série extensa de manuais escolares, como compêndios de botânica (entre os quais, o que de forma tão especial e inesperada me chegou às mãos), biologia e zoologia, com ilustrações originais da sua autoria. Segundo diferentes investigadoras (ver Mogarro, 2017), os cerca de 40 títulos de publicação de SC, expressavam as correntes editoriais da época, e devido ao uso inovador das suas ilustrações, desenhos a carvão, fotografia e uso da cor, constituem um valor incontornável no âmbito didático, manualístico e artístico do nosso país.
Algumas das mais de duas centenas ilustrações, foram incluídas na Exposição virtual sobre Seomara da Costa Primo: vida e obra (Portugal, 2006), e constituem o arquivo do “Núcleo Seomara da Costa Primo”, baseado na Escola secundária homónima na Amadora, lugar onde Seomara residiu até falecer no ano de 1986. Devido à riqueza visual deste arquivo, que contém ainda livros pessoais, fotografias, etc., seria fundamental o apoio à sua completa digitalização, o que contribuiria certamente a um aumento de estudos sobre o trabalho de SC, que hoje em dia são escassos.
Fonte: Repositório Digital da História da Educação (Portugal, 2006)
Mas a criatividade engenhosa da Seomara foi além do desenho biológico, incentivando a observação, experimentação e (re-)formulação de hipóteses através de metodologías activas na aula, na qual promovia o desenvolvimento de competências e habilidades específicas para cada uma das suas alunas. Como forma de enriquecimento e integração social global, Seomara defendia também a troca de cartas entre alunas (alguém recorda os “Pen Friend”?).
A 24 de junho de 1929, introduz o cinema como forma de abordagem pedagógica a uma aproximação do mundo “real”, no Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho, com a projeção de “Chang: A Drama of the Wilderness” (dirigida por Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack, 1927). Esta obra foi a primeira de um suposto ciclo, sobre a qual escreveu, no mesmo ano, um artigo publicado na primeira série do suplemento Cinéfilo, do Jornal O Século.
Fonte: Repositório Digital da História da Educação (Portugal, 2006)
Numa altura marcada pelo início da luta pela dignificação e a emancipação da mulher, foi convidada, pela escritora, jornalista e activista política feminista Maria Lamas, para conceder uma conferência e escrever um artigo, patrocinada e publicado, no suplemento “Modas & Bordados”, do mesmo jornal, sobre a relação entre a educação e a Cruz Vermelha da mocidade. Uma experiência anterior num evento em Genebra organizado pela instituição internacional, permitiu-lhe observar o impacto da mesma em prol da paz, tornando-se uma promotora da adesão de Portugal.
Hoje e cada vez mais precisamos de uma ativação e apoio às gerações mais jovens para garantir uma sociedade participativa e informada. Recuperar a memória histórica, contextualizar a geração do conhecimento científico e utilizar métodos inovadores e criativos na sua transmissão são fundamentais no processo. Que o caso desta pioneira, talvez desconhecida, como muitas outras e outros cientistas portugueses, sirva como inspiração.
Joana Magalhães (Espinho, 1982), é doutorada em Bioquímica e Biologia Molecular pela Universidade Complutense de Madrid, e licenciada em Biologia pela Universidade de Aveiro. O seu percurso académico está marcado pela interdisciplinaridade nas áreas da engenharia de tecidos, reumatologia e comunicação de ciência desde uma perspectiva de género. Actualmente dedica-se a tecer pontes entre diferentes actores, através da comunicação e métodos participativos, para promover uma ciência mais aberta, inclusiva e conectada com a sociedade.