“Somos iguais aos deuses inventando”
José Saramago, Os poemas possíveis
1ª Analogia = Notação musical vs Palavra
Partindo da ideia que a linguagem musical, como qualquer outra, resulta de uma convenção, de uma sinalização, interpretar como ler ou tocar uma pauta musical (e consequentemente reproduzi-la num instrumento) corresponde, também, à necessidade de conhecer previamente essa sinalização, esse alfabeto. É essa construção de um alfabeto, que regista ideias de harmonia, ritmos e melodias que permite decorar o som de cada letra (ou sinal) e a forma como está representada no papel (o que acontece, do mesmo modo, na linguagem verbal). A notação musical ocidental, tal como a percebemos hoje, com suas figuras rítmicas e indicações de expressão escritas num pentagrama (cujo suporte é constituído por cinco linhas, a chamada pauta. Cada linha e espaço é utilizado para representar uma nota musical diferente), é o resultado de séculos de especulações, tentativas e erros, usos e costumes e reflexão de teóricos e compositores sobre uma questão difícil: Como registrar através da escrita os sons musicais? O fato da música ocidental ser registrada graficamente permitiu o desenvolvimento da polifonia, de modo que os compositores pudessem se debruçar sobre o legado dos mestres antigos para estudar a fundo suas práticas composicionais.
Para um olhar perfeitamente leigo na matéria como o meu (que nunca estudei música e que não sei tocar qualquer instrumento), a abordagem destas questões torna-se ainda mais estranha, obrigando-me a pensar como é que alguém que não sabe reconhecer este tipo de signos (traduzi-los em termos de significação), consegue interpretar ou ler uma linguagem diferente daquela onde habitualmente circula: as palavras. Desde que nascemos somos instruídos num mundo cuja partitura já está criada: seja ela composta por palavras, sons, números, linhas ou imagens. É a aquisição destas competências, literacias, que nos permite interpretar qualquer conteúdo. Interpretar como ler ou tocar uma pauta musical será, por isso, sempre um exercício cognitivo cego, retomado a partir do zero, implicando a utilização de ferramentas pré-existentes de leitura e significação (o alfabeto), e a respetiva compreensão.
Será que um cego musical, iletrado nesta linguagem como eu, está habilitado a interpretar, a atribuir significação a uma notação musical, um signo? Ou apenas poderá traduzir essa linguagem num reconhecimento mudo, numa experiência estética e emocional? Naquilo que lhe sugere e, inevitavelmente, lhe reorganiza a visão das coisas e do mundo. Interpretar é, neste sentido, sempre uma experiência nova. A criação da escrita musical, tal como outros suportes forjados pelo humano, falam da sua grande criatividade e da necessidade de compreender o mundo e o habitar. De o traduzir de inúmeras formas. A música, essa forma sublime de o dizer é, talvez, a mais maravilhosa, enigmática e grandiosa de todas. Mesmo para uma iletrada e analfabeta musical como eu! Talvez seja essa a paráfrase, a definição para perceber o que Saramago quis dizer ao afirmar no poema: somos iguais aos deuses inventando.
2ª Analogia = Partitura vs Texto
A partitura tal como um texto é uma composição de frases que têm um sentido. Ora o intérprete musical, para produzir uma determinada interpretação, tem de conseguir ler a partitura. O modo de tocar e experienciar e, mais importante, de transmitir algo ao ouvinte, ao público depende disso. Existe, igualmente, neste processo, todo o mecanismo físico, de movimentação de dedos, braços, membros. A forma como a interpretação musical afeta o corpo, como o transfigura, o impele. Embora desconheça totalmente o processo, imagino, sempre que ouço alguma composição que me transforma e atinge, o que sente quem a executa. Ele é o meu mediador, aquele que me transporta para um universo cognitivo que desconheço, mas ao qual tento atribuir significação. E isso é interpretar. E não só o universo cognitivo, ou técnico, mas um mundo novo. A experiência musical é talvez de todas as linguagens aquela que fala com mais propriedade do significado da vida, do seu sentido metafórico. Numa dimensão que nenhuma leitura ou interpretação a poderá alguma vez esgotar ou objetivar. Poderemos alguma vez objetivar a experiência do Requiem de Mozart ou a Paixão segundo São Mateus, de Bach?
A escrita musical, a sua notação numa pauta, é também fruto de um caminho, de um processo de invenção de grafias, de registos, procurando fazer corresponder uma ideia abstrata, um som, a um símbolo. Com isso construímos discursos, versões, interpretações. Que são sempre infinitas, mas que recorrem a um património, a um repositório de palavras antigas. A escrita neumática é diferente da escrita moderna e o aspeto das pautas e registos musicais são diferentes ao longo dos tempos (bem como os signos utilizados. As colcheias, por exemplo, são muito recentes na história do pensamento musical). A notação moderna é o resultado de séculos de desenvolvimento e especulações acerca de uma grande questão: como escrever sons musicais abstratos? Parece simples, vendo a partir dos dias atuais, mas tal questão levou séculos para ser aperfeiçoada. Ora, a fala contém fonemas que unem-se para formar as palavras que, por sua vez, formam frases que têm um significado concreto. Criar uma maneira de escrever sons abstratos, com suas particularidades de entoação melódica e rítmica, não foi nada fácil. Há uma relação histórica entre o desenvolvimento da escrita musical no Ocidente e as técnicas
composicionais utilizadas pelos compositores, a fabricação dos instrumentos, o tamanho da orquestra, o desenvolvimento do contraponto e da harmonia, além da óbvia possibilidade de preservação das obras. Foi um processo histórico que durou séculos, ao qual gerações de compositores, instrumentistas e teóricos de diversas épocas e lugares contribuíram individualmente ao longo do tempo. Tal processo foi um fenómeno ímpar na História. O sistema de notação musical ocidental é um dos grandes legados civilizacionais da Humanidade.
Interpretar como tocar uma pauta musical implica, quanto a mim, um reconhecimento de palavras, de sinais (de convenções), que depois constituem frases, composições, com toda as diferentes formas que existem, como se pode ver pela comparação das duas pautas abaixo indicadas (uma do período medieval, a outra de Brahms). Obriga ao domínio de um determinado vocabulário e alfabeto. Só assim é possível reproduzir os sinais no instrumento. É também necessário conhecer o seu modo de funcionamento e técnica. A forma como individualmente me afeta e se adapta ao meu corpo, às minhas mãos. Mas interpretar como tocar um instrumento musical é, para mim (uma total leiga na matéria), uma experiência estética, uma fruição artística, um compasso, um intervalo onde a escuta da vida se instala em toda a sua magnificência.
Ana Paula Jardim nasceu em Coimbra. Licenciou-se em Filosofia e desempenhou funções no âmbito da promoção da leitura e da gestão de eventos na Divisão de Bibliotecas da Câmara Municipal de Oeiras, onde foi coorganizadora, entre outros projectos, das obras 10 Livros Que Mudaram o Mundo (publicado pela Quasi Edições, em 2005), Cesário Verde, um pintor nascido poeta (apresentado no âmbito do colóquio que assinalou os 150 anos do nascimento do poeta, intitulado Cesário Verde: Visões de Artista e integrado nas respetivas Actas pelo Campo das Letras, em 2007) e Dez Luzes num Século Ilustrado (publicado pela Editorial Caminho, em 2013). Integrou, desde finais de 2016 até Maio de 2023, a equipa do Templo da Poesia, do Parque dos Poetas, na área de programação e mediação cultural. No âmbito das Comemorações dos vinte anos do Parque dos Poetas (1ª fase), foi a responsável pela organização e seleção de poemas da Antologia 20 anos 20 autores, com coordenação editorial de Jorge Reis Sá e integrada na coleção Livros de Oeiras. Venceu o Prémio Glória de Sant’Anna em 2021 com o seu primeiro livro de poesia, Roupão Azul, com a chancela da Guerra e Paz Editores. Publicou, em maio de 2022, na mesma editora, o seu segundo livro de poesia intitulado Enfermaria. Tem participado em diversas Revistas Literárias. Desde junho de 2023 faz parte da equipa da Divisão de Cultura e Artes, do Município de Oeiras.
Fotografia da autora por Josefina Melo.