3 poemas do livro “Massa Fosca” de Vicenç Altaió

SOLILÓQUIO OU TRATADO DE COMO FAZER UM POEMA
Primeiro, entoaremos uma cantiga,
uma cantiga ou a melodia de uma cantiga.
Depois, riscamos numa folha branca, onde cada linha
corresponderá a uma sílaba, marcamos
com uma seta virada para baixo as tónicas
e, ainda, com uma de duas pontas
os acentos secundários. Cortarás o verso
segundo a vontade do ritmo e da imagem
visual, e o resto seguirá o ditame do primeiro.
Ignorarás as pequenas pausas entre uma palavra e outra.
Eis uma das ciladas a considerar:
nem o verso nem cada palavra, enquanto palavra isolada,
nem as cesuras sintáticas têm algo a ver com o novo que,
externo a elas, será agora a sua linguagem.
Ritmo, porém, fixado antes do tempo,
pois, impedindo que fluam por conta própria,
confundimo-las à nossa vontade com toda a semelhança
de conteúdos antecipados. Mas a vontade de comunicar,
essa, acima de tudo. Esse será o mínimo
e o maior risco que nos propõe;
do contrário, seria apenas expressar e interpretar
as contradições internas da sociedade.
Onde está Lourenço?
Cortarás o verso onde aquiescer, sabendo, como sabes,
a estrutura poética da tua própria língua
e o discurso lírico ou narrativo, com todas as variantes
que por aqui cabem e que, salvo uma,
nunca se cruzam senão num ponto ilimitado.
O poema deve acabar sem acabar,
e ler-se-á outro. Nunca caias, também,
na vulgaridade de cair como um chumbo.
Um poema não pode ser uma prova de resistência.
São precisos respiradouros, pois crateras em excesso
transformam cinza em fogo. Hoje, a poesia é a linguagem
de uma diapositiva entre vinte e quatro por segundo,
a imagem do nosso tempo.
Por isso, deixarás um verso inacabado
e silenciarás as sílabas não escritas,
que discretamente a vista recolherá.
Descansará o olhar e a fala,
e um novo bloco, aliviado pelo equilíbrio
fora do retângulo, surgirá como um vício dito,
um segredo partilhado, uma confidência ao leitor.
Ah, já temos recetor.
E que lhe dirás, Lourenço, ao teu descarado?
Nada podemos evocar.
Impúdicos que somos perante tantas leituras
e na busca da ação humana – quero dizer, do conhecimento –,
tão longe e tão perto da solidão.
A razão do verso é ser livre, ou é, ou não será.
Mas nem tanto. Despreza, isso sim,
intencionalmente, a ladainha e o desafino.
Desafia.
Não nos será tão fácil persegui-lo nas razões alheias
e na sua escrita, e não no falar,
que tanto palavreia e tanto arde.
Esse será o nosso sétimo ponto cardinal:
que suem os outros, pois trabalhar cansa.
E tu e eu, tentaremos concluir?
O poema, o tratado ou o solilóquio.
Bem sei, Lourenço, que com um esqueleto apenas,
um mero fio condutor, sem mais nada,
se nada lhe adicionas – um tema evocado,
uma ideia desdobrada, uma canção,
uma sensação, um embate de signos –,
é um zero absoluto elevado ao absurdo,
condição reservada à própria natureza.
E saber de métrica sem saber do mundo
é tão grave quanto saber do mundo
e não saber de métrica.
Por isso te coloco diante do maior dos engodos.
Esqueçamos tantas regras sábias
e detenhamo-nos agora na nova preceptiva.
Como julgas, senão, que se resolveria este poema
que é solilóquio e tratado e aventura – onde está Lourenço? –
e preencheria o tempo que me dedicas?
Certamente, assim, somos viciados em tão pouco.
*
PORQUE TENHO SEDE, GÉRARD DE NERVAL O DUPLO
O prestígio da vigília; o sonho é uma segunda vida. Ao chover tão intensamente, a água descia pela calçada abaixo, infiltrava-se entre as pedras e escoava-se pelas sarjetas. Vi várias luas a passar e a Terra tinha saído da sua órbita, vagueando sem rumo. Temia que a própria Terra se afogasse. Cada homem tem um duplo, e quando o vê, a morte está próxima. Tu proclamaste o dano e iniciaste, com persuasão demoníaca, o instinto pela natureza do sonho entre os jovens ingénuos. Que surpresa terão quando virem que a noite se prolonga. Agitavas o teu ânimo e a velhice, provocando a lascívia entre os teus discípulos. Sou eu a quem vieram buscar, mas é outro quem sai. No lugar escuro, atrás da nuca, na rua branca sem esquinas, um buraco minúsculo sugava a água para as profundezas da sede e do poço. Temia que eu mesmo me afogasse. Começa a noite eterna, e será terrível. O que acontecerá quando os homens se aperceberem de que o sol já não existe? No dia seguinte, acalmado o trovão e o relâmpago noturno e o vento desbotado, parecia-me ver um sol negro no deserto e um globo vermelho de sangue sobre as Tulherias. Todos sabem que nos sonhos nunca se vê o sol, embora muitas vezes se tenha a sensação de uma claridade mais viva. Encontraram-me com a barriga cheia do líquido da chuva, afogado e com os olhos extasiados pelo êxtase da tempestade. — Porque é que não queres comer e beber como os outros? — perguntara-me ela. E eu respondera: — Porque tenho sede. Tudo começou quando me ofereceram o anel e começou a chover. Enterrei-o. Ao chegar à Praça da Concórdia, o seu pensamento era suicidar-se. Refugiei-me numa livraria de velho, de portas abertas e paredes brancas — o sanatório —, naquela hora afónica dos galos. Passei a noite a ler Aurélia e as Quimeras de Gérard de Nerval, que ele acabara de deixar. A desesperança e o suicídio são o resultado de certas situações fatais para quem não tem fé na imortalidade, nem nas suas dores nem nas suas alegrias. Atirei o anel pela sarjeta abaixo. Quase no mesmo instante, a tempestade acalmou e, ao mesmo tempo, cresciam as vozes da Rua da Velha Lanterna, perto do Sena. Eu já me tinha suicidado, bebendo embriagadamente a chuva; agora, Gérard, pendurado num poste de ferro com um cordão de avental de cozinha, vestido de hábito novo, botas cinzentas e chapéu de coco posto. Um raio de sol começou a brilhar — um raio de sol Negro da Melancolia. Um século de ação num minuto de sonho.
*
VIDA DUPLA DO INSONE
A noite seca-se e filtra-se pelos vidros opacos
o embranquecimento gélido do horário diurno,
e com ele os monstros conhecidos, transfigurados, transeuntes.
Distraído nos postigos, ainda se demora a escrever.
Uma palavra dita não regressa, aponta ao branco branco.
Irá ao trabalho com o êxtase camulfado na carteira?
Saberá desprender-se dos hábitos que o oprimem?
Com o cabo carcomido e o metal enferrujado,
permanece com a pena na sombra e a tinta negra negra.
Tudo depende dele; nada pode contra o modelo ordinário.
E pode, pode sim — socorram-no, pois os deuses não virão.
Que não ceda na paixão, que o tédio não o isole.
Não é preciso que trombetas se ergam,
nem vogais repetitivas, nem clamores anémicos.
Será privado de sepultura, ele que empurra o real.
Terá de enterrar os poemas no próprio corpo desperto,
beber-se, vampiro, o pesadelo vivo, as criaturas
e o espectro espalhado pelo horror do vazio, pelo delírio e pelo reflexo.
Carrega o fulgor, o ápice e a queda na agonia,
a espuma nos degraus da encarnação e do nascimento.
Antes que o poema e o quarto se tinjam de luz,
mau sangue negro branco sobre o asfalto.
Tradução do catalão para o português por Tiago Alves Costa.
♦
Vicenç Altaió (Santa Perpètua, Barcelona, 1954). Ensaiista, investigador cultural, poeta, crítico de arte, curador de exposições literárias, científicas e artísticas, tradutor teatral, editor de revistas de vanguarda, articulista de opinião, agitador cultural e traficante de ideias.
Dirigiu o centro KRTU (Cultura, Pesquisa, Tecnologia, Universais) e o Arts Santa Mònica. Atualmente, preside a Fundação Joan Brossa.
Interpretou o papel de Casanova no filme História da minha morte, de Albert Serra.
Acabou de publicar Enlaces com a vanguarda, o décimo segundo volume da autobiografia sem sujeito “Tráfico de ideias”, e, recentemente, duas investigações culturais: Joan Miró e os poetas catalães e O radar americano. Arquitetura, arte, comunicação visual e Guerra Fria. Uma novidade destes dias: O sonho da subversão. Memórias de um traficante de ideias.
Nota do tradutor:
Estes três poemas foram selecionados de Massa Fosca, antologia que reúne a obra poética de Vicenç Altaió entre 1978 e 2024. Agradeço a generosidade do autor, que partilhou não só este livro, mas também outras obras — com a minha expectativa de que, quem sabe, algumas venham a ser traduzidas no futuro.