5 poemas do livro “peinar el viento” de Ernesto Castro
amar a distância
dizer a verdade
e prender fogo a si próprio
será como viajar
para outro país com cara de
louco encontrar uma fotografia
será como ser fiel e unica
mente fiel a não
ser reconhecido
*
lá onde o terror
se torna espetáculo
carne escrever pensar
entender a tua consciência
que há pouco se libertou
para não ser nada mais
do que um pequeno deus privado
repetir
repetir
sem esquecer o inverno
*
ser fiel é fingir / que o tempo não existe.
entre as lâminas da persiana
encandeada pelos carros cujos faróis
riscam a parede do nosso quarto, percebo
há quanto tempo o gel das unhas nas minhas mãos
e nos meus pés esmaltados e estes pelos
em geral por todo o lado crescem
sujos e cada noite mais e mais
sujos sem o meu consentimento
*
Carnivale
Úlcera diabética do meu estômago,
o circo desinfla as suas asas de vinil.
Há gargalhadas em línguas,
provavelmente provenientes
do latim.
Onde o frio amontoa silêncios aos punhados
não desanimes
por mais que queira/possa/deva
atirar-me em cambalhota ao bem-vinil.
Um bilhete para ti. Aggggarrotadas,
as cordas afinam o seu lamento
ao soltar crianças nas minhas redes.
No balcão há 2n
bilhetes para ti.
Os teus aplausos gravitam-me
por dentro. Por isso, espero que termines
/toma o teu tempo/ a tua ovação.
Sob a cúpula ébria do trapezista,
sob o olhar atento do palhaço juiz,
trocamos cromos /não tens, sim tenho, não tens
repetido, repetido, repppppetido/ densos de suor.
A tenente nostalgia do animal exibe-se.
Ecoa a nossa gordura servida em plástico ou cartão.
A mulher barbuda varre risinhos no seu canto
caso a olhemos de soslaio.
*
Triumph des Frühlings
Partícula de pólen, filha de uma nuvem,
cortina milimétrica que separa
o detalhe ínfimo
da tua íntima felicidade circundada.
Partícula de pólen, fulgor suspenso,
branco ADN que esvoaça
em estações de automóvel
e a sua mãe a primavera.
Partícula de pólen, toma
esta navalha borboleta
e escarifica
um guarda-chuva no meu peito,
um guarda-chuva para cada peito,
para cada um dos meus peitos.
Pois diluviam
ovos estrelados.
Pois diluviam
altares ateus, desses
que os amantes professam.
Primavera? Verão!
E catorze clássicos calados.
E vinte e poucos versos viúvos.
Tradução para português por Tiago Alves Costa.
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Ernesto Castro é um escritor, pensador e sonâmbulo millennial espanhol. Professor de Estética na Universidade Autónoma de Madrid, encontra-se atualmente a finalizar a sua Trilogia Platónica e a desenvolver o seu próprio sistema filosófico (o «naturalismo genérico»). Dedicado à «poslatinidade», como chama às culturas segregadas do latim, planeia peregrinar até Santiago por uma variante do Caminho Português. É também autor de um canal no YouTube com mais de 150.000 subscritores, onde partilha vídeos das suas aulas e conferências.
Estes 5 poemas fazem parte do livro “peinar el viento” (Letra transversal, 2023).