O livro do dragom ou o livro dos afetos I Raquel Bello Vázquez
Enquanto pesquisador, são muitos os trabalhos já publicados por Roberto Samartim (Redondela, 1971), tanto em livro quanto em revistas científicas. E, embora algumas das suas composições já tivessem sido editadas pela revista Agália, agora temos nas mãos o seu primeiro livro individual como poeta na coleção “Álfama árvores e livros”, da Companha Editora.
Fago já de início a explicitação do meu possível conflito de interesses: há 30 anos que o autor do livro e eu somos amigos. Uma daquelas amizades poucas e raras que se tenhem como certeza para toda uma vida. Isto posto, não farei uma resenha “técnica”, mas uma leitura honesta e subjetiva deste Livro do dragom.
O primeiro poema do Canto I, abre o coração deste poemário, de um lirismo sofrido e talvez desencantado, afirmando que o livro contém apenas “umha única verdade sem sombra/ (somos o caminho que temos pola frente/ o resto é memória).
Publicado no momento em que a nossa geração, nascida nos anos que rodeiam a transição para a imperfeita democracia atual, vai chegando aos cinquenta anos, o livro de Samartim evoca, de um lado, a nostalgia pessoal de quem já acumula dores, perdas, desenganos e decepções e, do outro, a melancolia política de uma geração (ou, melhor, de uma fracção dela) que sonhou uma Galiza que reparasse as suas perdas e pagasse as dívidas com os nossos ancestrais (aqui encarnados por Moncho, Ugha, Sisa, Mucha), aqueles que nos amaram, alguns que já morreram, e que nos deixaram o legado precioso de uma visão de mundo guiada polos caminhos do mar e dos ciclos naturais, do estoicismo dos humilhados, da honestidade sóbria dos sobreviventes: “Herdei dele o direito ao monte comunal/ e a dignidade calma de quem escolhe nom fugir/ e aguantar,/ porque nunca delatar um camarada”.
Aqui é que o pessoal e o político se confundem, como Isaac Lourido aponta certeiro no seu posfácio. As perdas políticas são também (ou sobretudo?) pessoais. É a perda dos cheiros, das sensações, das cores, dos sons e dos silêncios que agora parecem pertencer ao território do mito, mas que, como o dragom da Redondela natal, sempre foram reais.
Os poemas debulham visões tristes e fermosas das paisagens marinheiras do Sul, a sombra das ameixeiras e a sensação de salitre na pele, a liberdade infinita do mar, mas também das paisagens urbanas de uma Compostela que, entregue à picadora do turismo tardocapitalista, dificilmente carregará mais os sentidos e a potência simbólica que já tivo como lugar de uma certa emancipação polo estudo: as pedras que evocavam a lírica medieval de Aires Nunes, o devalar da história vista por Otero Pedrayo, a Alba de Glória de Castelao, ou a pulsão de vida de um Arredor de si, por citar apenas os óbvios, são hoje testemunhas caladas de lojas de souvenirs e de franquias de comida rápida: “Perdo-me por ruas empedradas/ estreitas de mais,/ com gente de mais,/ e missangas com azeviche de mais”.
“E já nom sei se te conheço”, diz a voz lírica, e essa pergunta ecoa desafiante: será que ainda nos conhecemos? Conhecemos ainda as nossas paisagens, a nossa história, os nossos futuros possíveis?
Filhas e filhos, netas e netos da pobreza, hoje detentoras de diplomas que nos convertem em classe média, em “trânsfugas de classe” como escreve Annie Ernaux, somos a realização dos mais loucos sonhos daquelas que nos sonharam, mas a fermosa escrita de Samartim, que lembra leituras compartilhadas de Ezra Pound e Álvaro Cunqueiro, nos desafia com perguntas incómodas: o que figemos com o legado que as nossas mais velhas e os nossos mais velhos nos deixaram? O que ainda podemos afirmar que sobrevive da ética das nossas ancestrais?:
“E agora?/ Dizei que hei-de fazer agora co’a minha herança,/ agora que a casa ruiu e nom há i horta, nem eira,/ nem fruita, nem árvores, nem peixes;/ agora que os moinhos nom som já para fazermos farinha/ e pam só no mercado”.
Pensei no meu bisavó, que não conhecim, chegando à Habana há mais de 100 anos, quando um 25 de julho eu coloquei o pé também pola primeira vez na ilha. Pensei em Consuelo e em Dorinda enquanto lia os poemas de Samartim. Chorei polos caminhos percorridos, e tivem saudades também da “outra vereda/ destinada a outros passos/ a outros lábios e outras flores/ e a tanto verdor perdido”. As escolhas feitas, nos planos individual e coletivo, nos afastam dessas veredas abandonadas, estradas que não seguimos e nunca saberemos se eram os caminhos certos.
Talvez hoje seríamos capazes de viver como pensamos se tivéssemos percorrido outros percursos, mas, afinal, e apesar de todas as perdas, ficam duas portas abertas à esperança: a amizade, evocada em vários poemas, mas, sobretudo, em “Agora que a lua cresce e andamos em campo aberto,” e o conhecimento: “Fracassamos por última vez/ porque agora sabemos/ …”.
Os poemas de Roberto Samartim, trazendo imagens e ensonhações do passado, mostram caminhos de futuro pautados por uma filosofia do amor, da pausa e dos cuidados, na contramão da vertigem produtivista da contemporaneidade.
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