História da pedra
batemos com ela no chão
polimos seu excesso
lhe demos forma
iluminamos com o fogo dela
o nosso rosto primitivo
a educamos e a empregamos
em tarefas várias:
apetrecho de morte e utensílio
antes das erosões
desenhamos nela
a nossa crônica rupestre
e adivinhamos no cascalho
a nossa sorte
depois fizemos dela algo precioso
— a gema
e o vestígio de sangue rubi
nos quartzos e turmalinas:
reis e igrejas com o peito
crivado de esmeraldas —
para nós
temos as pedras nos rins
e as que se consomem nos cachimbos viciados
ambas derretendo como as de granizo
enquanto reservamos quatro na mão
e um teto prestes ao ataque
nelas tropeçamos e por meio delas
sentimos a profundidade do abismo
com elas por fim nos descremos:
morremos todos enquanto elas
elas permanecem:
só os diamantes são eternos
*
Fábula para vestir
as costureiras
desenham nosso molde
para que ele caiba no tecido
perseguindo o tracejado
elas dançam a tesoura
desfiam carretéis
e trabalham à máquina
como se nobres lidassem
com seda pura
iniciam a costura
tomando tento
ao pontiagudo das agulhas
— é aconselhável evitar sangue —
alguns entrechos necessitam
de estofo para um melhor caimento
(atenção especial
aos vincos das costelas
e à região dos olhos:
locais de urdidura precisa)
as costureiras aplicam camadas sobrepostas
a depender do freguês
côncavos mais ou menos rugosos
pregas fáceis de desfazer
e cantos impossíveis de arremate
depois de alguma violência extrema
quando o traje está pronto
as costureiras verificam se é possível
rasgá-lo por completo (ou parcialmente):
se sim elas nos vestem a pele humana
sob medida
cheirando a couro e penitência
e saímos prontos
direto da fábrica
e sem garantia
*
Agricultura do poema: uma receita
“penetra surdamente no reino das palavras”
ordenou drummond num poema
pois então retorne ao escuro:
analfabetize-se
segure apenas o som
e uma possibilidade remota de significado
aceite-se
pré-silábico e explorador
aos poucos
arrepie a pele das letras
mas por enquanto
não dê valor aos vocábulos:
trate-os como objetos
vazios de utilidade
(faca sem lâmina
cadeira insentável)
você saberá tatear a sombra
encontrar por baixo a terra onde pisa
você saberá o momento de colher
a vagem debaixo dos pés
e abrir a fenda
por onde escapará o grão verde-úmido
quando isso acontecer: acenda uma vela:
estude na semente a possibilidade dos frutos
se sua mão for terreno baldio
não vai medrar
mas se for de bom arado
vingarão espalhando ramas:
uma colheita de palavras
à disposição de um você todo alfabético
se produzidos em silêncio
profundos surgem os verbos
(frescos de terra
da cor da gente depois do amor)
bruta sai a ideia
repleta da seiva ilógica da poesia
depois de lavrar
e recolher todo o alimento num cesto
escolha uma receita de preparo
livro de banquetes ou antepastos
analise as etapas
porções e temperaturas
faça então tudo ao contrário
absolutamente tudo ao avesso
e o poema estará pronto
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