“Um silêncio” I Matías Rodríguez-Mouriño
Resultaria exagerado dizer que há tantos “silêncios” como sons? Não seria por acaso verdade dizer que a noção de “silêncio” nos coloca perante um problema que é, se não infinito, praticamente inesgotável? Em termos fisiológicos, a questão é certamente mais simples: o silêncio “físico”, como o de uma câmara anecóica, refere-se à ausência total de som.
Acontece, no entanto, que este foi muito raro e nunca plenamente experimentado pelos seres humanos, quem apenas se podem aproximar ao silêncio. No sentido mais geral e fluido que lhe é habitualmente atribuído, isto é, como um estado de som em que a maior parte dos emissores desapareceram, em particular os sons de natureza intrusiva para o receptor (“ruído”), existem provavelmente tantos “silêncios” como “sons”. Fascinante, deliciosamente pérfida ideia de uma Enciclopédia dos silêncios…
A simples ideia de “silêncio” evoca para muitas pessoas os mesmos significados que as noções de “refúgio” ou “solidão”. Para outrem, levanta a poeira de recordações indesejadas, ou suscita o sentimento do vazio e da marcha cega do tempo em último termo, da morte que nos persegue. Muitas vezes, sem dúvida, representa apenas a plácida ausência de ruído e a possibilidade de repouso. Para outrem, ainda, representa a mais violenta das intrusões, o corte mais profundo no devir maquinal dos dias, uma espécie de ameaça de intrusão do/no Real.
Demoraríamos uma vida inteira a lermos aquela hipotética e esmagadoramente extensa enumeração de silêncios possíveis que evocamos anteriormente. O silêncio é o fim da batalha, a serenidade profunda que envolve a contemplação do ser amado, e o mais caótico dos ruídos (o único em que alguns podem encontrar paz). O silêncio é lermos e pensarmos; mas o silêncio é também, no entanto, a impossibilidade de ler ou pensar. Aliás, o silêncio é uma rua vazia, uma casa vazia, um coração vazio; silenciosos são os berros que saem de cabeças vazias.
O silêncio é respeito, mas também desafio; o silêncio é, para muitos animais, humanos ou não, a certeza de um perigo. O silêncio é retirada do século, desafio à autoridade, direito de não dizer nada, é o espaço entre as notas e, no entanto, a própria possibilidade de uma nota. O silêncio é uma ocupação e um pós-guerra. É uma paz desejada e uma paz imposta. O silêncio é um segredo e é a espera que pesa sobre uma resposta que não vem.
Tentar apreendermos os limites de uma possível definição de silêncio exige, portanto, uma investigação que vai para além do titânico. A noção abre-se e dela brota toda uma série de correlatos. O sentido do silêncio é o sentido de tudo o que emerge no seu seio: refúgio, solidão, memória, vazio, tempo, morte, calma…
O silêncio é respeito, mas também desafio; o silêncio é, para muitos animais, humanos ou não, a certeza de um perigo. O silêncio é retirada do século, desafio à autoridade, direito de não dizer nada
O silêncio de que fala a literatura crítica confronta-nos com um problema recorrente: será que só podemos falar de silêncios de forma “unilateral”? Será que o “silêncio” só existe naqueles casos em que (se) declina, e que qualquer tentativa de formar uma ideia clara e global é apenas uma repetição do movimento segundo o qual, para Feyerabend, “a abstração nega a vida”?
Para Giovanni Pozzi, numa das poucas afirmações que poderiam, de facto, aspirar a ser reconhecidas como universais, “toda a finalidade da vida em solidão”, que aqui estendemos à vida silenciosa, “esbarra no seguinte paradoxo: a solidão é inacessível quando é procurada, e torna-se insuportável quando é tomada. O homem é um ser solitário que não está só”¹. A solidão e o silêncio são bens para uns e castigo para outros, mas a solidão ou o silêncio impostos são um castigo para o mundo tudo.
No nosso tempo, ainda mais ruidoso do que o de Pozzi, a própria Comissão Europeia estima em 10.000 o número de mortes resultantes da exposição prolongada a níveis inseguros de ruído, por sua vez condição de uma maioria cada vez mais esmagadora da população mundial. O dominó hormonal provocado pelo ruído acaba por conduzir a transtornos de saúde cardiovasculares, mental e de sono. Por outro lado, ainda de acordo com os relatórios oficiais, as condições socioeconómicas, diretamente ligadas à questão da habitação, e às próprias condições e localizações dessa habitação, mostram que são as camadas mais vulneráveis da sociedade que estão mais expostas e são mais afectadas pelo ruído constante que nos rodeia².
A fronteira entre emoção e patologia é muitas vezes ténue. Talvez só o prazer (no sentido de jouissance, não de plaisir) possa arbitrar esta diferença. Em todo o caso, é interessante notar como as doenças da cidade são muitas vezes comparáveis às da sua população. Parece igualmente evidente que a fronteira entre o íntimo e o coletivo é igualmente ténue. Quando nos debruçamos sobre as
patologias auditivas, o que é evidente é que o contexto de emergência climática aumenta a deiscência destas indignidades nas nossas paisagens urbanas.
Enfim, muitas das doenças geralmente caracterizadas como fenômenos individuais podem também ser consideradas como perturbações colectivas, e é aqui que entram em jogo muitas das perturbações da fala de base auditiva. De igual maneira, a maior parte das perturbações do ecossistema sonoro urbano são psicogênicas. A própria cidade faz-nos adoecer.
Ainda segundo Pozzi, “os babilônios pensavam que os deuses tinham mandado o dilúvio para a terra porque estavam fartos da tagarelice dos homens. Hoje não se contentariam em enviar-nos apenas um dilúvio”³. Para aqueles de nós que não acreditam em castigos, este dilúvio talvez se refira mais à dolorosa verdade de que muitas vezes é a coisa que mais amamos aquela que com maior força nos pode destruir (e nos vai destruir). Será que o meu amor pela música vai destruir a minha audição? Ouve muita música e acabarás por ficar surdo. Mais uma vez, o que é o silêncio? Comecemos.
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Publications Office of the European Union, 2016. https://data.europa.eu/doi/10.2779/200217