“A linha e a agulha que cosem o seu desejo” I Poesia de Leonardo Almeida Filho
Roteiro sentimental de conselhos inservíveis
A gente só morre uma vez. Mas é para sempre.
Millor Fernandes
Conte os passos ao redor da praça,
pedras, postes, nuvens, pássaros.
Enumere vira-latas, grave seus latidos,
contabilize o farfalhar das árvores
e os arrepios sob os ventos frios.
Fique atento:
a soma deve ser menor que seus suspiros.
Fotografe poças de chuva
aprisione o céu de seus reflexos
para futuras aquarelas inefáveis e elusivas.
Catalogue crepúsculos, alvoreceres,
manhãs de sol, tardes de chuva,
noites de grilos, estrelas e vagalumes.
Registre orvalhos, folhas e perfumes
Fique atento:
Não se esqueça dos frescores.
Descarte sonhos desfeitos,
rancores, mágoas e saudades.
Libere espaço para o espanto e o estupor
e o coração para as coisas tolas
e imprescindíveis
retalhos que são da grande costura da vida.
Fique atento:
A linha e a agulha que cosem o seu desejo
estão nas mãos do sujeito que te fita do espelho.
*
Outro cogito
Disseram-me que existo por que penso
Acreditei na história e andei pensando
Que talvez falte aqui algum bom-senso
Pois não existo quando estou amando
Sou puro desejar que se propaga
Por outro coração, se derramando
Espécie de fogueira que se apaga
Quando esse amor se vai, desaparece
Eu que não existia e nem pensava
Enquanto amava, sei que me apetece
Ser mais que pensamento, mais que amor
Existo por que tudo me acontece
No campo do desejo, gozo e dor
Talvez seja essa a nossa humana sina
A de existir além do estupor
De saber que a verdade cristalina
Da existência é mais do que se ensina.
*
A relatividade da teoria
É tão simples:
explode uma supernova a zilhões de anos-luz
e uma luzinha quase imperceptível
no mapa do céu
em zilhões de anos,
se apagará
Nesse cenário de luz e escuridão
qual o tamanho de sua dor?
Que fim levarão seus desejos?
Que restará de seus sonhos?
O que importa sua presença
Ou sua ausência?
Tudo tão pequeno, tão minúsculo
quanto uma supernova explodindo no quintal de uma galáxia
sumindo como somem sua luzinha viajante,
sua dor, seus desejos e seus sonhos.
E você achando que é o centro do universo.
*
Os mal-estares
Enfim, de que nos vale uma vida longa
se ela se revela difícil e estéril em alegrias,
e tão cheia de desgraças que só a morte
é por nós recebida como uma libertação?
“O mal-estar na civilização”
Sigmund Freud
I
O abutre do menino
e de Santa Ana
por culpa de Leonardo
bica o fígado
expõe correntes
e ele, que finge não estar nem aí,
sonha com um charuto
enfiado no rabo
e a cara de prazer de Sigmund
dizendo que um charuto
nem sempre é só
um charuto.
II
Disse que esmaga
ratos com seu coturno
disse, sorrindo, que
quando ninguém vê
espeta os olhos dos cavalos
com alfinete
Amo a cegueira equina,
Nada como trotear às cegas
disse com a voz
suave, quase sussurrando,
aquela mesma voz de quando
sob seus coturnos,
esmagando ratos,
faz suas preces
contrito.
III
Emudeceu-se
murchou, secou
o que foi pântano
hoje é deserto.
Quando o marido a cavalga
fecha os olhos e suspira
pensa no rio
de sua aldeia, fluindo
fluindo, costurando peixes
arrastando árvores
e bichos mortos
lembra de suas águas turvas.
IV
Não fossem os espinhos
que saboreia na pele
imune às dores, aos rasgos,
aos lanhos,
e talvez não tivesse outro
motivo para viver
Encontrou
um caminho
que percorre solitariamente
ocultando as feridas sob
a camisa de mangas
compridas
que repousa sobre suas asas
impotentes.
Pensa ainda nas porradas que,
certamente,
virão completar essa estrada.
V
Chama todo homem que
a possui
de papai!
e todos eles adoram
fodê-la
chamando-a
filhinha!
Os olhinhos brilham
e piscam como asinhas
de beija-flor
e ela se abre em pétalas
quando chupa o dedo
e promete ser
boazinha.
Eles então se fecham
e lhe desferem alguns tapas
pra que a menina se comporte
é o que dizem
e eles e ela, nesse jogo,
fingem que acreditam
VI
Disse aos amigos
que foram nove tiros
nove tiros
nove tiros no viado
nove tiros com vontade
de matar
não errei um só
A boca se movia por ódio
babava, cuspia, espumava
Nove tiros na cara
daquela abominação
comemorava
respirava aliviado,
pois aquele viado
não o espelharia mais.
VII
Quando a esposa o flagrou
vestindo sua meia-calça
sentiu-se enviuvar
ele chorou, pediu perdão
ela, muito machucada,
disse que era tarde
precisavam dormir
abriu o armário
e escolheu uma camisola
de seda, a mais bonita,
e deu para ele
que abriu um largo sorriso
e agradeceu.
VIII
Tinha a mania de frequentar
banheiros públicos
para conferir o tamanho
dos pau dos outros
e compará-los com o seu
Colecionava armas de fogo
revólveres que o faziam vibrar
toda vez que limpava os canos
e se lembrava de alguns homens
do banheiro público
Nesses momentos, mordia
o lábio e suspirava
profundamente.
IX
Ninguém entendeu quando
ele se levantou
foi à cozinha
e voltou com uma faca
que cravou no pescoço
de Rex, esfolando-o,
o vira-lata preto
que se deixava penetrar
pelo cachorro do vizinho
numa brincadeira no quintal.
X
Ela nunca abriu as pernas
dizia o pai, orgulhoso
integrante da Opus Dei:
Minha filha é virgem
intocada por varão nenhum
comemorava
O que ele não sabia
era que a moça
toda noite
religiosamente
inseria o crucifixo de madeira
na boceta
e afogava o Cristo.
XI
Médico algum consegue explicar
o que se passa com ele
um mistério.
Desde que,
numa emergência,
foi parar no hospital para
que se lhe retirassem do reto
um peso de ferro entalado,
desses de academia,
ele mergulhou no silêncio
exibindo apenas o molambo
da língua paralítica.
*
Os bichos e os homens
Parte de nós anda a mugir
triste quando mastiga
o capim contaminado
o milho podre da espiga.
Outra segue relinchando
na calmaria das rédeas
a dor da espora, seu lanho
na caminhada de léguas.
mas nada mais me comove
que o balido lacrimoso
de meninos e meninas
sobre o campo calcinado
de um futuro que se finda
e nem bem foi começado.
Você não vê, sequer percebe
que raramente me engano
a alegria do rebanho
é quando o lobo medonho
come a ovelha do lado.
Parte de nós ajoelha e reza
pondera o cão e o gatilho
mas abençoa o disparo
em nome do pai e do filho.
Outra se esconde e faz prece
foge assoprando o rastilho
que queima e lhe persegue
sempre esperando o estampido.
Há os que somos rescaldo
daquilo que não mais serve
seguimos estupefatos
minada a nossa verve
pois vemos que a alegria
do rebanho é quando o lobo
nos vendo assim de soslaio
nos deixa pra outro dia
e come a ovelha do lado.
*
Ode aos loucos
Bem-aventurados os loucos
e seus catálogos ensandecidos de delírios
que caminham pelas ruas
sem passado e sem destino
sob a chuva, sob a névoa,
ao sabor dos ventos e da fumaça
ouvindo vozes, em silêncio.
Bem-aventurados os espíritos insanos
e o tropel de bestas invisíveis
que transparece em seu olhar em fúria
quando cavalga a lua e seus dragões
nas noites de todos os dias ensolarados
no sol da noite mais escura
uivando estranhas melodias
Bem-aventuradas essas almas inquietas
que bailam como folhas de outono
girando, secas, sem rumo sobre o asfalto
e que riem do que não vemos
e que choram por tudo ou nada
e que fustigam velhos fantasmas
Bem-aventurados esses andarilhos
que, alheios ao carro da História,
às estruturas e aos engenhos,
às rezas e pragas e superstições,
às guerras, às ameaças, ao holocausto,
tecem suas vidas únicas e desprezadas
na calmaria típica dos solitários.
Bem-aventurados os aluados,
os alienados, todos os malucos
que salgam a terra com seus passos
sempre condenados à solidão do arbítrio
e à lógica peculiar dos insensatos
que, ao final, os salva do olvido
nos desvios e nos atalhos
nos mergulhos e nos saltos.
Bem-aventurados os visionários
e seus sonhos assustadores, formidáveis
que abrem portas, fazem pontes
que iluminam e nos encantam
quando se imolam em praça pública
sem receio, pudor ou vaidade
sem medo algum de nenhum deus
sem culpa, sem pecado, sem juízo
e sem maldade.
♦
Leonardo Almeida Filho, (Campina Grande, 1960), escritor. Mestre em literatura brasileira pela UnB (2002). Publicou Graciliano Ramos e o mundo interior: o desvão imenso do espírito (EdUnB, 2008). O livro de Loraine (romance, 1998), Nebulosa fauna & outras histórias perversas (contos, 2014), Babelical (poemas, Patuá, 2018), Nessa boca que te beija (romance, Patuá, 2019), Grande Mar Oceano (romance, Editora Gato Bravo/Portugal, 2019, Jaguatirica, Rio de Janeiro, 2019); Tutano (poemas, Patuá, 2020). Finalista do Prêmio Candango de Literatura 2022 com o romance Os possessos (Patuá, 2022); Berro (Contos, Editora Patuá, 2023).