“Para além da pele que reveste a vida” I 7 poemas de Lucas Perito
A Face das Coisas
E os dias se grudam à pele e se aclaram nessa que é a justificada face das coisas.
Assim como os passos que ressoam outros passos com datas e nomes diversos.
Dentre esses um nome invariavelmente seu,
esvaziado de significados definitivos,
extraviado em local baldio,
acercado ao vazio e firme porque morto em pé.
Somos tantos em outros e vamos nos tendo sobre ainda outros mais
que é essa a obediente jornada das pequenas ficções
que nos retorna diferentes caras de um mesmo dia.
*
Modorra
Assim que me deito, sonho que este corpo é um outro
e conto quantas mãos de quantos cantos vieram a mim;
pacientemente respondo ao doutor: trinta e três.
O coração dilata, sístole e diástole se cruzam,
adentro um outro espaço, caso, tenho filhos, sou campeão do mundo…
… sigo à deriva, com os dentes mordendo o lado contrário das calçadas,
indiferente como todos os rios que cruzam este planeta,
e deserto junto àqueles que desertaram da terra.
Ao final do dia, frontalmente apago
para que esse golpe distraia o destino da mesma realidade.
*
Dois Países
Hay sólo dos países: el de los sanos y el de los enfermos
Enrique Lihn
Para além da pele que reveste a vida
ou, para ser mais claro, que reveste a linguagem,
observamos algo anacrônico e, por que não, acrômico e, portanto, cômico,
pois já não há mais como capturar o momento, e repetir a tentativa de captura é cair, por óbvio, em algo crônico.
Todas essas negações e esses quase homônimos são uma forma de falar do tempo.
Nosso passaporte nos permite viver dentro e fora do tempo.
Fora, nunca sabemos quando estamos nesse país,
apenas na viagem de volta é que percebemos como aquele era leve.
Dentro sentimos esse país em todas as suas faculdades, o mais horroroso que existe.
Como em Lihn, podemos durante boa parte da vida viver entre os dois, dentro e fora,
mas ao final só conseguimos viver dentro,
Atlas que carrega um mundo que já nem vale mais aproveitar.
Todas essas afirmações são uma metáfora sobre o amor.
*
A Vida Não
A vida não.
Equidistante porque forjada na memória.
Diuturnamente o corpo não
porque as casas ainda grávidas de passado alinham-se agora
e toda esquina dobra antigos rostos, ingrávidos,
no seu deslizar por dias gastos.
A vida não,
porque roída pelas margens.
O corpo não,
porque mapa da desorientação em busca do invisível.
Toda noite é um ventre e os dias caem entre;
E é sempre hoje
com essa memória de casa, essa memória de mãe e essa memória menor: memória de roupa,
memória de doce, memória do toque;
e é sempre hoje,
como a serpente com o corpo todo na boca
e a polia que já não traz novidade.
Agora que os cachorros latem o dia,
o cotidiano toma de assalto os desenhos do mundo,
a rua adentra a casa
e na frente, passa uma linha contínua que parte de lugar nenhum.
Sobra apenas um eco banal:
“Quem pode encarar o futuro esvaziado de passado”?
*
Uma Casa: Rua Itatiaia, 104
Para conhecer uma casa só casa,
sem o seu dobro em útero ou morada celeste e muito menos como extensão corporal.
Uma casa toda concreta,
visitada apenas com a palma dos olhos,
ainda que a contrapelo da memória.
Uma casa casa.
Cômodos grávidos de sentido mesmo que vazios,
portas que dão ao nada e se sabem divorciadas da realidade.
Uma casa só segredos edificada em existência nenhuma.
Uma casa só memória, oxidada, porque incompleta.
Uma casa tão casa que não-casa.
Um antiprojeto da realidade.
Um amuleto fechado em si mesmo.
Essa casa, essa figura-limite até aqui e para além daqui.
*
Pletora
Para Lia
Dizem que não havia nada.
E ainda que seja difícil conceber algo no não-algo,
o que por si só seria suficiente para cair por terra o que aqui se coloca, começo narrando:
Sobre este espaço em branco
cada marca, mesmo borrada quanto a um sentido exato, é signo definitivo a esta história.
Então uns sobre os outros inscrevem a sua existência neste ponto primordial,
átomo-total, o verdadeiro verbo de onde escrevemos:
sua vó, seu pai, eu, você e até aquela pessoa que acaba de atravessar a rua.
Conformamos a nossa existência obliterados diante de todos os signos inscritos
que assinalam unicamente a sua presença, sem intenção alguma.
Para os grandes eventos nada se modificou, contudo todos somos este mesmo evento,
conjugamos tempo e espaço sem importância alguma.
Através desses novos olhos e mãos que marcam um novo local
você expande o caos com outro signo,
inventariando o mundo uma vez mais.
♦
Lucas Perito, São Paulo, 1985 – Poeta e tradutor. Escreveu alguns livros de história e fotografia. Publicou o livro de poemas 38 Movimentos (Lumme Editor, 2018) e Cosmocorpo (Editora Urutau, 2022). Tem poemas publicados em algumas das principais revistas brasileiras, além de algumas revistas de Portugal, Espanha, Galícia, Colômbia, Peru e México.