“Levanta-me das Águas Profundas”: uma leitura de Lígia Reyes sobre a obra de Luiza Nilo Nunes

Levanta-me das Águas Profundas, de Luiza Nilo Nunes, é um daqueles livros labirínticos, cujas pistas são deixadas na mente do leitor para que este possa idealizar a estória que mais lhe aprouver; ou cuja imaginação do leitor, mais ou menos fértil, irá tecer uma narrativa, mais ou menos brilhante. Enquanto leitora, poeta e amiga da Luiza, a estória que aqui apresentarei poderá ser mais uma recriação minha, do que exatamente a recriação da autora. Faço um aviso, talvez não tenha sido sobre isto que a Luiza escreveu. E este não poderia ser um motivo maior para vos convidar a ler este livro – que já se transforma num fenómeno de culto, uma iguaria sangrenta para paladares exigentes.
Esta obra começa com Lázara, que é o rosto de todas as mulheres do mundo que foram assassinadas às mãos de um homem. Uma criatura idílica, que por obra de uma necromancia literária, se levanta das águas profundas. O seu sopro divino é arquitetado como se fosse uma vingança deliberada da autora. Lázara possuí “duas pernas, duas coxas e dois aquáticos pulmões”; e a sua “carne é fria, turbulenta e violentada”. Uma espécie de beleza imortal, pálida e em estado avançado de decomposição – e que das águas surge, como se renascesse de uma placenta rasgada com uma faca romba. Toda ela se ergue altiva, conservando para sempre a idade em que foi morta e a transcendência desse mistério perpetuamente vedado ao homem. Ela nasce, morre e nasce – uma metáfora para a menstruação, partos e lutos femininos. Lázara está prenhe dessa dor sombria que é o próprio corpo da mulher – e surge como um grito diabólico que ecoa no peito de qualquer uma de nós.
Toda a imagética e narrativa desta obra se funde através do género da prosa poética. Qualquer leitor versado saberá que este é o registo que impede o salto narrativo na leitura. É impossível que saltemos um parágrafo, uma frase ou até mesmo uma palavra, na iminência de querer encontrar rapidamente o clímax da própria estória. Este efeito de maestria literária, apenas nos condena ao grotesco detalhe e obriga-nos a dilacerar as nossas próprias entranhas mentais. São diversas passagens do livro que se afiguram com esta crueldade poética, sendo as mais dantescas aquelas que pertencem à figura masculina central da obra – aquele que chamarei de psicopata, um arquétipo contemporâneo que já pertenceu à mítica figura literária do vampiro. Numa delas, o psicopata sonha com “absorvê-la, respirá-la sem cedências. Como o lobo que persegue o cheiro lúbrico da presa – a sua forte e turbulenta, acidulada exsudação. Quer desossá-la entre os seus dedos como uma pomba prematura; usufruir da carne rija sobre a mesa de uma autópsia; pôr-lhe espéculos e instrumentos entre as coxas azuladas; pôr-lhe pinças na raízes impolutas dos pulmões, nas cordas finas e canoras da garganta humedecida – e com as unhas destrançar-lhe o seu finíssimo cordão”. Nesta obra será impossível saber se o psicopata sobrevive até ao último capítulo – sem que passemos por esse longo desejo de cortar a carne, como quem cria mais orifícios sexuais num corpo feminino. Assim como é impossível saber o destino de Ava e Ana, sem que soframos as suas respetivas violências.
A dualidade entre Ava e Ana torna-as em personagens centrais, como se sempre tivessem sido os dois lados da mesma moeda. Duas donzelas que se afiguram como presas e que irão contemplar o horror uma da outra, unidas não pelo psicopata, mas pela súbita mão que as cria – num golpe que a teoria da narrativa chama de Deus Ex Machina. Saber então quem é Lazara e porque de súbito se ergue, é apenas possível porque essa mão divina é tétrica e pretende devorar o mundo com a sua justiça poética. Uma súbita catarse é então feita à custa de um colapso de mortandade, “mãos partidas, ombros lassos, boca aberta e claudicante”; assim também jorra o horror que é ser mulher, Ana e Ava, as adolescentes que já menstruam. Como se isso lhes desse o odor adocicado de flores frescas. Flores que poderão ser colhidas para ornamentar os túmulos das assassinadas. Ou que sejam apenas essa breve metáfora da virgindade – e aqui menciono a agilidade com que a autora é capaz de usar terminologias e referências bíblicas. Sendo capaz de prostrar essa incongruente narrativa, da virgem pura, em flor e que sem mácula, concebe Cristo. Na realidade, essa figura de desejo absoluto, praticamente púbere, idealizada pelo psicopata, encarna todo o discurso social da subjugação feminina ao patriarcado. A mulher que de súbito tocada, perde todas as suas qualidades, inclusive a sua própria posição de ser humana neste mundo.
Partindo do princípio da mulher vítima e violentada pelo sistema social em que se insere, então o psicopata, o monstro, o homem, acaba ele próprio por ser um fruto desse mesmo sistema social. É seguindo a minha narrativa desta estória, que num impasse de angústia poética, surge Anacleto. Uma vítima real dos seus laços afetivos. O homem que mata outro homem, para que possa manter protegida a sua própria idealização carnal da mulher. A obscuridade de Anacleto, diz-nos que afinal, o lobo possui mais do que uma função moral em toda a história da literatura. No entanto, se me perguntarem quem é realmente o psicopata e qual a sua derradeira estória, não o saberei dizer – pois neste livro, os finais apenas se destinam às mulheres.
Fragmento de Levanta-me das Águas Profundas (Urutau, 2024), pp. 7–8:
Falemos da mulher com a cabeça mergulhada nas águas. A mulher a rodear-se de corais, o luminoso afogamento das correntes. A mulher com uma estrela ou uma âncora nos pés. À superfície é um cardume a enlouquecer-se de robalos: duas pernas, duas coxas, dois aquáticos pulmões que não sustentam o arcabouço do mundo, a espessura do problema, a violentíssima estrutura da Obra. Libertar-se das placentas equivale a nascer. E que pesada equivalência, e que terrível o exercício de quem nada para fora dos aquários da morte, e chega à margem com um sopro, uma expressão parturiente, assim exposto à ingenuidade de criança submersa, feto afeito à uterina florescência dos rios. O que diriam os afogados se a vissem borbulhar, resfolegar, bater os pés em desespero, ser cuspida das entranhas placentárias como um osso, carne cheia de livores? Pela boca morre o peixe, mas a boca da mulher é uma aflição. Um golpe rígido de rosas levantadas para o ar, sugando o ar da atmosfera, em desalinho. Quando chega à superfície tem a cara dos que brilham, todo o corpo foi cingido pelas redes do milagre, foi timbrado pelos lábios cadavéricos de Lázaro. Cabelos, omoplatas, coxas frias, tornozelos. Um fortíssimo clarão que sai do túmulo das águas e respira abruptamente na nudez de um animal ressuscitado; na voraz dilatação de um saco fúnebre de ossos; no restauro de uma carne angustiada e só por isso excecional: a carne fria e turbulenta e violentada das mulheres que regressam para a vida ladeadas pelos signos da morte, sem destreza, inteligência, perspicácia ou pulcritude — só a pura e irascível majestade. É que está pura e expansiva como as águas das marés, esta mulher com uma cabeça humedecida de batismo. Esta mulher que se levanta com um grito para o hausto dos nascidos.
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