Pequenas anotações:
1. Utilizar um elemento objetivo, uma coisa, um acontecimento, pode ocorrer por um motivo puramente estético. Por exemplo, no poema A catedral, de Alphonsus de Guimaraens.
Por entre lírios e lilases desce
A tarde esquiva: amargurada prece
Põe-se a lua a rezar.(…)
Aqui, é evidente o sentido estético da escolha ‘lírios e lilases’. A aliteração, a musicalidade. Se o poeta tivesse dito ‘rosas e margaridas’ não haveria rima, nem a sonoridade buscada pelo autor. Escrever de forma mais sintética possível, com elementos que entrelacem forma e conteúdo. Não gosto de explicar poemas. Mas, no caso de Vila Grimaldi, trata-se de um campo de concentração e tortura, durante o regime Pinochet, transformado em museu, museu que visitei. De lá, quase ninguém saiu vivo. Então, pensei que não era necessário muitas palavras para falar sobre um absurdo da maldade humana. Um discurso longo tiraria o impacto do fato em si. Por isso, o poema curtíssimo:
aqui
as pedras
pedem desculpas
por não poderem
prestar
seu testemunho
Uma aliteração, um jogo de sons (as pedras pedem desculpas etc.). Mas, o que choca é o fato de algo que consideramos insensível e0 inerte, a pedra, pedir desculpas por não poder testemunhar o abominável. A pedra, tratada como algo mais sensível do que o humano. Ou seja, se não houver articulação entre forma e conteúdo, dificilmente o poema provocará estranhamento. Essa subversão é, a meu ver, o núcleo explosivo da arte.
2. O que é chamado de ‘cena’ eu chamaria metáfora andante. Não uma metáfora inerte. No poema sobre a escova de dentes, o objeto de uso corrente revela o quotidiano da vida urbana. A escova de dentes inicia um gestual diário, próprio a todos nós. Imagino algo como a cena de um filme de Charles Chaplin. No entanto, não há ênfase na imagem, não se pretende pintar nada. As coisas, os objetos, as plantas etc. despertam, num determinado momento, algum sentimento, alguma coisa que desencadeia a articulação do poema. A ideia do poema. Depois, vem o trabalho de dar a forma, de estudar a linguagem adequada, de procurar os recursos da sintaxe.
3. Nas histórias infantis situações do cotidiano são modificadas e se tornam inusitadas porque essa é a condição do fantástico. A criança precisa do elemento mágico para fazer face ao real. Para criar seu mundo próprio. O poema, por sua vez, também se desgarra do real, ao mesmo tempo, em que está preso a uma realidade, que é a do próprio poema. Neste caso, no poema Brioso, o entregador de leite, penso que isso fica explícito. Uma espécie de comparação entre duas formas de heroísmo. Mas, o heroísmo do entregador de leite somente pode ser revelado através do poema. Não pedimos mais à Musa para cantar “o varão industrioso que, depois de haver saqueado a cidade sagrada vagou errante…”. Cantamos o homem simples e, por ser simples, despojado. Por isso, talvez, mais heroico, porque tudo o que faz desembocará no Esquecimento.
4. O poema traz dentro dele uma espécie de núcleo explosivo, capaz de subverter um dos aspectos fundamentais da cultura, que é a linguagem. Ele utiliza um material de segunda mão, a palavra, mas tem que fazer com ela algo novo no rastro do que já foi feito. O que é, ao mesmo tempo, difícil e contraditório. Quando nos referirmos a Paul Klee, Benjamin, Fernando Pessoa os Bosch é porque eles refletem essa afinidade em torno da importância de que o mundo do poema deve ser subvertido. É a única possibilidade de olharmos o que somos, de enxergarmos o lado obscuro de nós mesmos.
5. O título. É quando a telha se quebra que entra a claridade. E a luz penetra no escuro do quarto, então vemos as pequenas partículas que brilham na réstia. É preciso uma réstia para que as pequenas vidas apareçam. Elas nunca têm holofotes sobre elas, não têm o brilho do mundo…