“A casca metafísica me contém como um feto” I Poesia de Flávia Rocha
Três poemas da série Aos Nossos Poetas (do livro Um País, Confraria do Vento, Brasil, 2015)
(para Hilda Hilst)
O azul insuportável
na mesa de mármore azulado: estetizante
e lírico. Monja, vestida de negro,
as mãos estendidas sobre a mesa das águas
no labirinto azul, você desce o decote desabitado,
mostra a omoplata. Da plataforma,
o louco vê apenas uma mulher desmerecida no trem
que passa. Nós todas de pé nessa mulher.
*
(para Carlos Drummond de Andrade)
O inseto cava cava cava,
áporo, no único chão. Bloqueado
na matéria que não termina. O cavar é constante
e repetido: de cinco em cinco minutos no amor,
de hora em hora na fome, em turnos no ato da guerra
turva, à margem de outra guerra. E é preciso que alguém
ao dizer verdade nos entregue a orquídea escura,
com os olhos luminosos, cavando à frente.
*
(para Adélia Prado)
Essa coisa deliciosa e doida, barbelas e cristas,
imoral, solta. Alta no meio da grama.
Discutir a sua sintaxe é recusar a descamar o peixe
destinadamente sujo, noite adentro, nos sítios escuros
de uma cozinha sem paredes. Mista como a dor
que começa a sumir. Quebrada como penca de chaves
rodando no dedo. Curva como mulher em dia radioso,
constantemente amanhecendo.
*
Cinco poemas do livro Exosfera (Editora Nós, Brasil e Portugal, 2021)
Em meio ao nada inorgânico
a voz humana é sempre mais real.
Germina no peito como planta nativa.
As folhas crescem tão rápido
que fecham todas as vias de retorno.
Nesse estado elevado
de pertencimento
amamos proliferamente (
*
Durmo mais fundo e me fecho
por dentro.
A casca metafísica me contém
como um feto. Indigente, aquoso
flagrante e inexperiente :
: o observador e o nada
: nadando multitudes no vazio.
*
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*
Plano B. Continuar. Refazer o que-foi-feito. Emendar
o que-foi-remendado. A originalidade furtacor
das bolhas de sabão : o sonho flutua
num raio fixo e estoura. Desenha ângulos
no tempo. Sem começo ou fim.
Eclodir não é nascer. Não é morrer.
*
Ideais se retraem como ondas
e nos mantém em contínuo estado
de contemplação : chocam-se
contra a mesma encosta
salubre | era após era. O espetáculo
trágico do nosso impasse
no desespero ríspido das estatísticas.
O tumulto histórico-geográfico-cultural
da sala de espelhos
e seus defletores midiáticos : o imediato
é o máximo que conseguimos exercer
em nome de uma liberdade tão oca quanto repleta.
Tão livre quanto qualquer liberdade.
**
Flávia Rocha nasceu em São Paulo, Brasil, em 1974. É autora dos livros de poemas Exosfera (Editora Nós, 2021, publicado também em Portugal), Um País (Confraria do Vento, 2005), Quartos Habitáveis (Confraria do Vento, 2011) e A Casa Azul ao Meio-Dia (Travessa dos Editores, 2009). Também é autora do livro infantil O Jardim de Erica (Editora Nós, 2023). Seus poemas, traduções e ensaios foram publicados em diversas revistas internacionais. Com mestrado em Writing pela Columbia University, por 13 anos foi editora da revista literária americana Rattapallax. É também jornalista e guionista. Vive em Portland, OR, e trabalha entre Brasil e Estados Unidos.