“Monsieur M.” por Kátia Bandeira de Mello
Monsieur M. entra na La Boulangerie sem a intenção de comprar qualquer coisa. Ou talvez guardasse alguma intenção secreta, sem que dela fosse se valer. Naquela manhã, tudo o que Monsieur M. iria pedir à Alessandra, a funcionária do café, uma caixa de papelão para abrigar o seu bolo. Ele sendo Monsieur M., morador da Lapa, acordado por bandos de melros e pombos na varanda de seu quarto, melros e pombos gordos e ousados, inimigos das manhãs descansadas, apregoados por manchas da escuridão nos corpos, um eco de Poe os assombra desde o Monte Alborz.
Sem tirar o chapéu panamenho, Monsieur M. meneia a cabeça na contumaz pequena dança do pensamento, está bem humorado, o dia enseja um grau de felicidade solar, há nuvens que as aves rasgam com seus bicos de madeira, gerando chuvas de papel picado.
Ainda na noite anterior, Monsieur M. levara intenção à ação e executou a obra. Um bolo “from scratch”, desde o rascunho de uma receita às letras definitivas. Um bolo destinado à caixa de papelão porque um bolo não deve sair por aí, desabrigado como os miseráveis nas ruas. Monsieur M. preparou o bolo para um amigo, um amigo que desconhecemos mas logo o reconheceríamos se nos fosse apresentado. A amizade bastou para motivar Monsieur M. a pesar ingredientes, separar ovos, peneirar farinha e fermento, esperar o derretimento da manteiga, seguir instruções da alquimia do substantivo para massa doce de farinha; nada pára Monsieur M. quando determinado a realizar algo. Mas e agora, a Monsieur M, falta-lhe uma caixa mesmo que sejam poucas as pedras soltas no caminho.
Estamos o Monsieur M., Alessandra, Catherine e eu quase no mês de junho, o aniversário do amigo do Monsieur M. ainda nos estaciona em maio, o primeiro decanato do signo de gêmeos, logo chegando à estação dos pessoanos, quantos são os amigos aniversariantes duplos do Monsieur M.?
Monsieur M., ao aprontar-se para preparar o bolo, possuía a lista completa dos ingredientes em casa ou foi preciso sair à rua para um pacote de açucar, um envelope de baunilha? Quantas perguntas, Monsieur M., antes que um caos essencial se formasse antecedendo o festim. É sabido que Monsieur M. faz questão de usar uma frágil vagem de baunilha de Bourbon de Madagascar, inspirado pelo verso de fragrância cativante, bouquet peculiar, paladar mágico (havia quem preparasse bolos acompanhados de copos de burbom, o que não era o caso do nosso cavalheiro, sempre sóbrio, sempre lúcido, sempre cortês, sempre molto lavoro ao aventurar-se no ofício culinário). A Monsieur M. encantava passar a ponta afiada de uma faca pela linha central da bainha, o talo enegrecido saído do vidro da loja gourmet. Monsieur M. se lembrava de um outro bolo no qual usara baunilha do Tahiti, trazendo um sorriso feito exclusivamente de reminiscências para os seus lábios, naquela ocasião o espanto dos convivas o alegrara sobremaneira, um feito jamais repetido com tamanha intensidade, a paixão provoca isso e mais, quem não o sabe. Monsieur M. lamentava que a vida economizasse tais momentos para que melhor reluzissem, ah, o número limitado de fatias, pensou, até porque um ou outro convidado daquele tempo se confundia com o pó de fermento sobre a banca da cozinha, um sopro, um sumiço. Um outro sopro, o do amigo aniversariante, apagará a vela presa no glacê à semelhança do nome de um antigo amante fixo nos dias.
Uma caixa para levar o bolo, nem grande, nem pequena, Alessandra buscava em vão, com nervosismo, nas prateleiras. Monsieur M.,o senhor hoje está nos trinques, um brilho anormal, o terno azul de listras brancas cintila, os pombos rastejam pela sua vaidade, estão ao seu redor pelo chão da boulangerie, a gente há de assustá-los com os nossos pés, eles não nos temem mais, afrontariam os monstros mais fantásticos da sua infância.
Alessandra acorda cedo para estar no balcão, deixa os filhos na escola, encolhe-se dentro do avental vermelho com um bolso para o bloco de notas e lápis para pedidos. Parece que Monsieur M. aprumou-se para a festa do bolo, tão elegante e estrangeiro, como os habitantes da Lapa das estrelas propícias. Devido a falta, a falta que o irritava de leve como a brisa vinda de Santos, uma frustração para Monsieur M. que tivera que deixar o bolo enfeitado de glacê em casa, a cobertura tornando o bolo mais vulnerável à atmosfera, ao fado ensaiado na esquina longínqua, é um coração que bate no ponto certo. Modelar o glacê com uma espátula lhe dera prazer, ia aparando as arestas, cobrindo a superfície, a pele do bolo até finalizar o objeto em apaziguada comunhão com o pensamento de Pongé, havendo ele, Monsieur M. escolhido uma dentre as suas escovas de cabelo para ordenar os fios grisalhos escondidos pelo chapéu de verão. Assim que chegasse à casa do amigo aniversariante, Monsieur M. seria forçado a tirar o chapéu, estava tão certo disso quanto a lei dos encontros cósmicos. Podia ser que o amigo de Monsieur M. fumasse e o folego contaminado pela nicotina não soprasse o número de velas correspondentes aos anos e Monsieur M., um homem devoto ao pensamento empático, decidira por uma única vela cortada da terra, uma chama fracionada lá de dentro do escuro emaranhado, das palmas que bateriam para que os corpos avançassem pelo desejo festivo e montassem retratos falados que Monsieur M. revelaria à Alessandra “in the morrow”. Monsieur M. soltava palavras em inglês quando o português desaparecia do crânio como chapéu levado pelo vento.
Alessandra não desiste fácil. De súbito, larga os deveres no caixa da boulangerie e dá um pulo na loja de cerâmica vizinha, ela diz que as pessoas vêem mais no escuro, ninguém tira a paisagem de quem olha com vontade e não é que a moça retorna com uma caixa de tamanho ideal para o bolo de Monsieur M., é tão fácil ser alegre, não há sequer uma fórmula. Monsieur M. a admira com olhos enternecidos, há todo um mundo que o protege nos confins da Lapa de estrelas propícias. Ele agora retrocederá em direção ao bolo, o bolo no repouso íntimo da espera, um objeto doce meteórico que continua a entre cruzar entre eles entre versos de uma chuva de papel picado orquestrada por Simurgh, a ave suprema da conferência das aves não excludente dos melros e pombos. O aniversariante, amigo do Monsieur M., ignora o levante que se apronta a seu favor, talvez assista a um filme de Truffault enquanto Alessandra oferece a Monsieur M. um laço de seda azul para a caixa. Terno, ternura e laço azuis. O virtuoso da despedida ressoa à melodia alada, aos que não se encaixam nas comemorações do Monsieur M. e seu círculo de amigos e seguem-nos num vagar à toa, bastante invulgar para as ides da primavera, a evitar tropeços que nos lancem, nós e a caixa, ao longe.
Kátia Bandeira de Mello é poeta, artista visual e escritora. Mora entre Coral Gables, Flórida e Lisboa.
Foto da autora: Ozias Filho.














