Um convite a abrandar, a escutar — e a recordar que há perguntas que só emergem no silêncio.
🗞️ Leitura adaptada do artigo publicado na revista Quiasmo.
Um convite a abrandar, a escutar — e a recordar que há perguntas que só emergem no silêncio.
🗞️ Leitura adaptada do artigo publicado na revista Quiasmo.
Prorrompimento da poesia
Todo calendário venta em maio
Todo vento existe até que as coisas caiam
Uma jarra é um vento no chão
Todo dicionário é museu de palavras
O homem que lê dicionários visita
Os vestidos da palavra
Mas palavra tem vestido
Pergunta alguém
Sim, palavra tem vaidade
De loja
Só o poeta conhece a nudez da palavra
A palavra nua em brasas de dicionário
Um vento derruba a jarra
Em maio.
*
Flores de Kafka
As cores sequestradas
Mistificadas em jardins
Ciano, magenta, amarelo e preto
Adesivos, banners, catálogos, prospectos
Brindes, camisetas, painéis
Uniformes anunciam a impossibilidade
De não estar mais dentro daquelas cores
De viver além do azul ou do vermelho
De fugir da identidade
De jogar o corpo fora da escala.
*
Terra sem males
Todas as palavras rudes
Formam as montanhas que foi um dia
Minas Gerais
Toda máquina renasce
No contingente ser das máquinas
Todo o embaraço humano
Ignorado pelos gatos
Todo vazio entre átomos
Tudo que se rompeu
Fios, barragens, amores
Tratados
Restos de construções gramaticais
Anais das instituições
A promessa de vir e não vir
Vidas em corpos arrestados
Presos a esse imenso vazio
Que desmatamos
As cidades são pastos cinzas
Sem onças
Apanha-se a vida no chão
Até que haja o consenso de que todo pasto
É cinza
Fica mesmo é um mato
Um imenso
De precários rebocos.
*
Passarinho
Só sei fazer poemas com passarinho
Todas as palavras cabem em passarinho
Dor, por exemplo, é uma palavra que
A gente não pensa em passarinho
Mas dor é passarinho
Na palavra gaiola
Saudade é uma palavra passarinho
Que procura terras distantes
Deus é passarinho no mamão
Amor é a palavra passarinho disfarçada
De passarinho.
*
Pique-esconde
Um, dois, três salve todos
Gritei antes que Deus me visse.
*
Silogismo
Repartiremos primeiro a tristeza
E igualmente tristes
Criaremos o hábito
Depois virão os bens
Que socializaremos
Para que ninguém mais seja dono
De uma casa triste.
*
Poemas apanhados no chão na estrada do núcleo rural
I.
Nasceu a flor no homem
A chuva demora
A formiga corta
O mato abafa
A mão arranca a tentativa
De flor no homem.
II.
Monta um cavalo
Mesmo que seja o vento
Deixa-te conduzir
A toda brida
Não mais terás o peso de
Levar-te a ti mesmo
Serás finalmente corpo
De cavalo
E vento.
III.
Se acabarem os passarinhos
Como farás os poemas
Terás que falar apenas das árvores
Mas as árvores secam no
Abandono dos passarinhos
Os rios sem as árvores vão embora
As flores desistem
Acabaram os passarinhos.
IV.
Todas as formações de água
Que caem
Têm por predileção
As telhas
Desse encontro é que chove
O que habitamos é som.
V.
De grunhidos
Faremos um mundo
E com gritos –
Neste uso
De urros –
Linguagem
Gramática
E normas
Cultas.
VI.
Água, se lágrima
Perde-se
Da foz
Nasce
Sem
Fim.
VII.
Rio sem margens
É mar sem praia
Perde-se
No desmedido
Do desencontro
VIII.
Tudo que alcanço
É um cata-vento sem Deus
Um mundo mecânico
De pá e vento.
*
Retrato com abelha no cabelo
Escrevo o lado oposto de quem me lê
Nunca pensei ser compreendido
Senão por passarinhos e saguis
As frutas me ajudaram mais que os
Dicionários de verbos e regimes
E as gramáticas
As palavras com as quais me importo
Ciscam
O vento que escrevo está nas folhas
Dos buritis
Só faço versos que têm sopro
No coração.
♦
Marcelo Benini nasceu em 1970 na cidade de Cataguases, Minas Gerais. Publicou O Capim Sobre o Coleiro (edição do autor/2010); O Homem Interdito (Intermeios/2012); Fazenda de Cacos (Intermeios/2014); Currais Concretos (Intermeios/2018); Poemas do Núcleo Rural (Penalux/2022). Vive em uma comunidade rural próxima a Brasília/DF.
Estes 6 poemas fazem parte do livro “Poemas do Núcleo Rural” (Penalux/2022).
Jean Genet (1910-1986), o mais subversivo escritor francês do século XX, chega a Brasília no início dos anos 1970. Percorre a cidade e a observa de todos os ângulos: das calçadas, do avião, do alto do Hotel Nacional, debaixo de chuva e de sol. Tem o faro afiado do marginal que sempre foi, fala incisiva de quem galgou os extremos.
Mesmo consagrado como escritor e louvado num ensaio do filósofo Jean-Paul Sartre, não tem pouso fixo. Se lhe perguntam onde mora, exibe o endereço que consta do passaporte, o da conhecida editora Gallimard. Qualquer ponto da terra é lugar de gente como ele.
Seu olho tem prisma de objetiva grande-angular, foco penetrante de raio laser. Desvenda o emaranhado de habitações que circunda Brasília. O entorno da cidade assemelha-se a um ninho em cujo epicentro boiam as duas metades do ovo gigante da serpente. A cidade, em forma de avião ou de pássaro prontos para o voo, está presa por um círculo de favelas que se alarga a cada dia. Ao autor de Diário de um ladrão, o complexo de construções aparentemente harmoniosas não parece ser construído para abrigar humanos, mas para guardar manequins louros ou morenos. Gente que não é gente. Transmite-lhe a ideia de que nada pode ter alma no interior daquelas construções cinzentas. Pelas ruas, procura algum negro ou índio entre os passantes, mas somente se depara com indivíduos de colarinho branco, pastas na mão.
Brasília é capital de um país inexistente.
Ao percorrer a Esplanada dos Ministérios, Jean Genet faz parada. Entra na catedral, “flor de concreto armado”. Espia tudo e seu olhar detém-se na cruz. Nela, um Cristo barroco parece subjugado pela estátua do anjo dependurada no teto de um céu de artifício. Não é o anjo do filósofo Walter Benjamin, que olha para trás após a passagem do progresso e apenas avista os escombros. O anjo é semelhante ao que apareceu a Dom Bosco, certa noite, num sonho “profético”, apontando o lugar em que surgiria uma cidade diferente, prenúncio de um país do futuro. Na visão, contam, ele teria indicado, com precisão, as coordenadas geográficas da futura capital federal do Brasil.
Jean Genet não sente qualquer emoção ao entrar na Catedral. Há um silêncio constrangido na sua nave. Um anjo suspenso. Um Cristo de cabeça baixa pregado na cruz situado no plano inferior ao do querubim, sequestrado de uma das igrejas das Minas Gerais dos escravos. Tudo contrasta com o que experimentou na pequena capela da cidade francesa de Vence. Ali, acomodou-se num dos bancos e foi tocado por uma luz diferente atiçando os cristais. O pequeno templo fora trabalhado com afinco, durante quatro anos, por um velhinho chamado Henri Matisse. À guisa de testamento, o artista alegrou a ermida com as cores surpreendentes de seus vitrais e desenhou nas paredes brancas, com o pincel amarrado na ponta de uma vara, os passos da Cruz. O escritor sai da catedral, confere de novo o entorno de Brasília e outra vez enxerga as favelas. De lugar semelhante, ele próprio emergiu para se tornar o grande poeta de Le condamné à mort. Então, confessa não entender como Oscar Niemeyer, um “comunista”, nem sequer foi capaz de perceber que era preciso alojar de forma humana o proletariado.
Ora, num deserto em que nada existia poderiam ter sido concebidas novas formas de convívio! É a partir do nada, pensa Genet, que tudo pode ser inventado. Por experiência, ele sabe que o zero, o mais ínfimo dos números é, entre todos, o mais poderoso.
Mas no horizonte raso da capital federal nada foi criado que o fascine. Em vez de um espaço democrático e de alegria vê-se confrontado a uma cidade fria na qual medra a segregação e almas consumidas pela rotina. No sítio traçado em forma de avião ou pássaro que nunca conseguiram voar, vidas são circunscritas em quadras. Nelas, relações permissivas são obstáculos a aspirações como a do trabalhador José Silva Guerra. Na parede do teto do Congresso Nacional, num abril de 1959, durante a construção de Brasília, o candango escreveu com lápis de pedreiro:
“Que os homens de amanhã que aqui vierem
tenham compaixão de nossos filhos,
e que a lei se cumpra”.
Quase seis décadas depois, é num buraco cavado para o conserto de um vazamento na cobertura do mesmo edifício do Congresso, que essa mensagem e vários poemas foram descobertos. Jean Genet observa o prédio no qual o operário deixou seu recado.
Com a disposição para mergulhar nos subterrâneos e lidar com provocações, o escritor indaga ao guia em que obras figuram os nomes dos que conseguiram transformar desenhos arquitetônicos em ousadias de concreto naquela paisagem de cubos, parábolas, esferas. Um mundo de cimento armado adornado de ipês amarelos mostrando que, apesar de tudo, alguma forma de natureza conseguira subsistir.
Pergunta por Joaquim Cardozo (1897-1978) e por Samuel Rawet (1929-1984), engenheiros calculistas e escritores que tornaram realidade os esboços arquitetônicos daquele prédio e de tantos outros de Brasília. Em resposta, ouve no francês traduzido pelo interlocutor, os versos de Cardozo:
Sou um homem marcado
Em país ocupado
Pelo estrangeiro.
Sou marinheiro desembarcado;
Marcho na bruma das madrugadas;
Mas
Trago das águas a substância
Da claridade.
DA CLARIDADE!
Anos depois de sua visita, Jean Genet é informado que Joaquim Cardozo sucumbira à depressão, após a acusação injusta de que teria falhado nos cálculos de um pavilhão construído por uma empreiteira. Quanto a Samuel Rawet, enlouquecido, perambulara pelas ruas de uma Brasília que ajudou a colocar de pé, antes de ser encontrado morto, sozinho, um prato de sopa nas mãos. De repente, o mais subversivo escritor de França sente-se transportado para a quadra 219 do cemitério de Brasília, sepultura de número 162, onde está enterrado Samuel Rawet. Curioso túmulo, em forma de caracol, desenhado por Oscar Niemeyer.
No centenário de nascimento de Glória de Sant’Anna (1925–2025), uma das vozes mais líricas e singulares da poesia em língua portuguesa, surge a antologia Silêncio Aberto, coordenada por Inez Andrade Paes, poeta e filha da autora.
Mais do que uma simples homenagem, Silêncio Aberto é um gesto de escuta, de continuidade e de afeto. Reunindo mais de 100 autores lusófonos, a obra propõe um diálogo vivo e pensante com o legado de Glória de Sant’Anna. Cada texto — seja poema, ensaio ou fragmento ficcional — parte de um verso, imagem ou atmosfera da sua escrita, para gerar novas criações literárias, reverberando e expandindo a sua voz no presente.
A poesia de Glória de Sant’Anna, atravessada por uma ligação profunda ao mundo natural, ao silêncio, à infância, à dor e às geografias interiores, encontrou em Moçambique um espaço fértil de escuta e expressão. Entre 1950 e 1974, viveu em Porto Amélia (hoje Pemba) e Vila Pery (Chimoio), experiências que deixaram marcas profundas na sua obra e inscreveram a sua voz numa etapa significativa do lirismo moçambicano.
Ao reunir tantas vozes diferentes num mesmo volume, Silêncio Aberto reafirma o carácter universal e intemporal da sua poesia. A coordenação de Inez — herdeira do gesto poético da mãe — empresta à antologia uma intimidade rara, uma vibração que atravessa gerações e geografias, numa teia de memória e criação.
A obra, com a chancela da Guerra & Paz, está disponível por 20,00 € (preço de lançamento) e pode ser adquirido nos canais oficiais do centenário ou em livrarias selecionadas.
Para mais informações sobre Glória de Sant’Anna e os eventos comemorativos que decorrem ao longo de 2025, consultar: https://gloriadesantanna.wordpress.com/2025/01/18/centenario-do-nascimento-de-gloria-de-santanna/
A revista ‘Quiasmo’ nasce como um projeto de vanguarda e com uma forte orientação afetiva galego-lusófona, fazendo pontes com Barcelona e a Catalunha. Ergue-se como um ecossistema de conhecimento destinado a promover e divulgar a arte, literatura e ciência.
Revista Quiasmo: ISSN 2938-6055
Contato: redacao@revistaquiasmo.net