Entrevista com Raquel Bello Vázquez: “Precisamos permitir-nos a criatividade de imaginar outras possibilidades de existência”

Há entrevistas que abrem caminhos, desdobram geografias, expõem contradições sem pressa de resolvê-las. A conversa que partilhamos com Raquel Bello Vázquez é uma dessas. Educadora galega, migrante no Brasil, escritora e pensadora, Raquel fala a partir de um lugar que é, ao mesmo tempo, físico e imaginado — entre Porto Alegre, a Galiza e uma ideia de mundo em colapso e reinvenção.
Nesta entrevista percorremos temas como a experiência migrante, os cruzamentos possíveis (e os entraves coloniais) entre a Galiza e o Brasil, a urgência climática, as tecnologias da parálise, o papel da literatura na desprogramação do mundo, a necessidade de pluricentrismo na lusofonia, e as vozes que hoje propõem outras formas de existência.
Raquel não oferece receitas fáceis, mas partilha pistas: nomes, projectos, livros, inquietações. O seu olhar crítico, inquieto e generoso propõe-nos uma escuta mais funda — da linguagem, da identidade, da ação e da lentidão. Porque, como ela mesma afirma, talvez precisemos de uma mudança absoluta… feita com calma, desde baixo.
Quem é Raquel Bello Vázquez?
Acho mui difícil definir-me na totalidade e na imobilidade do verbo ser. Mas posso dizer que estou, como imagino que acontece com a maioria das pessoas, em transição e em mudança: a sociedade transforma-se, os problemas requerem soluções novas, a nossa percepção da realidade não é a mesma porque nós não somos mais as mesmas e as nossas velhas certezas (no campo político, estético, pessoal) precisam ser revistas. Neste momento específico, sinto-me migrante, educadora, mulher preocupada (e às vezes apocalíptica) em relação à crise do clima e em conflito com muitos aspectos da contemporaneidade.
Como é essa experiência migrante? Em concreto, no vínculo com Brasil, sendo de origem galega?
A migração, por princípio, surge de alguma frustração de expectativas vitais, laborais ou outras. Mas é claro que a experiência de migrar do Norte para o Sul global é privilegiada em muitos sentidos. O passaporte europeu abre portas, e propicia um acolhimento que não acontece quando a migração é no sentido inverso (do Sul para o Norte) ou entre países do Sul. Isso tem a ver com o racismo brutal que organiza a sociedade brasileira e também com o seu fascínio pela Europa e os Estados Unidos como um ideal social que as pessoas, realmente, não querem ver concretizado no Brasil, mas gostam de admirar na distância.
Em relação ao fato de ser galega, é também uma contradição. Em Porto Alegre as pessoas têm muita curiosidade (às vezes invasiva) por saber de onde és quando percebem um sotaque de fora. Eu tenho algumas respostas prontas, mas costumo deixar que eles tentem adivinhar: as pessoas pensam que som portuguesa, argentina, uruguaia, etc. Se acreditam que som portuguesa, deixo que sigam acreditando, se acham que som de um país de língua espanhola, tento explicar que som daquele “quadradinho que sobra acima de Portugal, onde falamos este português com sotaque estranho”. Igual que nos acontece quando atravessamos o Minho, a experiência galega no Brasil tem um misto de acolhimento e decepção: eu sinto que aqui tenho uma cidadania mais plena porque podo desenvolver toda a minha vida em galego, cousa que não consigo fazer no meu próprio país, mas essa plenitude contrasta com a frustração de precisar explicar a minha identidade cada vez que coloco um pé fora de casa, e com a sensação de que uma maioria das pessoas acham a expressão de identidade galega mais uma excentricidade pessoal do que uma questão política.
Como achas que poderia articular-se um maior conhecimento mútuo entre Brasil e a Galiza? Aproveitando os vínculos próprios da Lusofonia e/ou desenvolvendo outros mais directos?
Os vínculos com a lusofonia são um tanto delicados no Brasil. Afinal, tenhem um gosto colonial e colonialista. Como evoca Mia Couto no seu texto “Lusoafonias”, a história da expansão da língua portuguesa, é uma de “viagens e crimes”. Não é apenas que o português chegasse ao Brasil como produto e arma de colonização e extermínio, é que deixou uma herança classista que, de alguma forma, rouba camadas imensas da população brasileira de sua língua materna, já que, enquanto o padrão escrito e formal ainda é muito colado às variedades portuguesas, a língua falada tem importantes contribuições indígenas e iorubás, principalmente. Por esse motivo, as pessoas mais empobrecidas crescem acreditando que “não sabem falar português.”
Dito isto, acho que os laços diretos, sem passar por Portugal, seriam mais efetivos. No último ano duas séries da Netflix, por exemplo, tiveram bastante êxito por aqui: várias pessoas me chamaram e me mandaram fotos para contar-me que estavam vendo “O caso Asunta” e “Gangues da Galícia” (que é o título que recebeu aqui “Clanes”). O fato de terem colocado “Galícia” no título parece-me que já indica que existe algum conhecimento e interesse. Com estratégias adequadas de produção de conteúdo e de utilização do galego, da procura de atores e atrizes do Brasil para as coproduções, penso que se poderia alcançar um bom resultado.
Precisamos de mais centros do mundo diversificados
se o nosso objetivo é viver de forma mais justa
e acabar com as heranças coloniais.
Essa perspectiva que indicas fora também assinalada por Francisco Salinas Portugal, por exemplo, desde a Galiza sobre os PALOP. Achas que o modelo de relacionamento deveria estar mais perto de um pluricentrismo, se calhar, para evitar esses (dis)sabores colonialistas…?
Com certeza!
A minha experiência no Brasil mostrou-me que, quando estamos na Galiza, a nossa única saída da pressão castelhana é a ida para Portugal. Nos passeios de fim de semana em Braga ou no Porto, é fácil acabar comprando a ideia do Portugal de “brandos costumes”, do colonizador bom que procurou a mestiçagem porque “não era racista”. Mas não podemos esquecer que o colonialismo português não é cousa dos tempos de Camões. Portugal só liberou as colónias africanas em 1975, anos depois de Inglaterra ou França, por exemplo. E foi também, junto com Espanha, a última potência colonial a manter o tráfico humano.
Sem querer equacionar as opressões, muito mais graves nos territórios que sofreram o imperialismo colonial europeu, enquanto comunidade que foi historicamente oprimida e explorada, a Galiza deveria trabalhar alianças com os países de língua portuguesa que compartilham dessa experiência, sem assumir de forma acrítica o discurso lusotropicalista ainda vigente em Portugal.
No contexto contemporâneo precisamos pensar, sim, uma comunidade de países “com” língua portuguesa (não “de”, porque falamos de países plurilingues) que reforce a solidariedade linguística sem apagar a diversidade inerente a cada um deles e que tenha múltiplos centros de produção cultural em Salvador, Luanda, Praia, Maputo, Díli, a Amazônia…
Nesse sentido, a experiência da jornalista Eliane Brum é um exemplo que poderia ser seguido: com uma carreira consolidada e com enorme prestígio, um dia deixou todo em São Paulo e mudou-se para Altamira, na Amazônia, porque, neste momento, é ali que é o centro do mundo. E desde ali dirige o interessantíssimo projeto Sumaúma. Precisamos de mais centros do mundo diversificados se o nosso objetivo é viver de forma mais justa e acabar com as heranças coloniais.
Em grande parte, desconhecem-se aqui esses projectos. Quais outros achas que devem ser mais divulgados para poder caminhar nessa diversidade efectiva?
É uma questão difícil de responder porque, pola sua própria natureza, os projetos descentralizados não tenhem muita visibilidade nem são facilmente acessíveis. Para uma pessoa que vive na Galiza, eu recomendaria começar polo próprio Sumaúma, que vai abrir algumas janelas, e talvez continuar com projetos como Rádio Yandé, que é um canal de rádio realizado por povos indígenas do Brasil.
Muito interessante também é o Projeto Querino, do jornalista Tiago Rogero, podcast que tenta explicar o Brasil contemporâneo a partir de perspectiva do povo negro, a revista angolana Ngapa, que é acessível na internet, igual que a livraria Kiela.
E, claro, estão algumas leituras incontornáveis como Ailton Krenak ou Conceição Evaristo, do Brasil.
São alguns exemplos apenas, mas que dariam por começar a puxar polo fio.
Roubando a ideia de Mark Fisher, no Realismo Capitalista,
o fim do mundo semelha uma saída mais real que o fim do capitalismo,
e parece-me que essa é uma grande derrota
Um fio que nos atravessa também… Como é que se vê o mundo desde aí? Por onde ir nestes tempos tão aparentemente impossíveis de transitar com calma?
Essa é uma dúvida existencial que penso que nos atravessa a todas nestes momentos: temos plena consciência dos problemas (ansiedade, depressão, descompasso com os ritmos e ciclos do nosso corpo e do nosso entorno…), mas parece que, coletivamente, não sabemos quais são as saídas.
Creio que, de alguma forma, entramos num estado de negação da nossa imaginação. Os discursos da esquerda saturaram e sobrepõem-se à ação real. Parece que o nosso foco está na performance do que pensamos que é correto, mas sem mudanças estruturais reais.
Há algum tempo lim o livro de David Graeber e David Wengrow, O despertar de tudo, que, com as suas limitações, mostra que, enquanto espécie, sempre fomos capazes de criar soluções imaginativas aos nossos problemas. Com a fossilização do capitalismo tardio, não somos mais capazes de pensar em alternativas. Roubando a ideia de Mark Fisher, no Realismo Capitalista, o fim do mundo semelha uma saída mais real que o fim do capitalismo, e parece-me que essa é uma grande derrota.
Estivem recentemente na Galiza e parece-me que o mundo se vê de forma bastante parecida daqui do Brasil e daí, ainda que com algumas nuances. Aqui temos a sorte de viver a reemergência de visões do mundo mais criativas e adaptadas ao mundo em crise, como são os pensamentos indígenas.
Lembro que em 2018, recém eleito Bolsonaro, impressionou-me a declaração de Ailton Krenak, acredito que ao Expresso, dizendo “Somos índios, resistimos há 500 anos. Fico preocupado é se os brancos vão resistir”. Na esteira de Krenak, acredito que a resistência está aí, em assumir que os discursos ocidentais que nos são familiares, em muitos sentidos, já fracassaram, mas que temos modelos de sociedade muito mais saudáveis e resilientes que podemos abraçar. Precisamos, apenas, permitir-nos a criatividade de imaginar outras possibilidades de existência.
Um desassossego que anuncia novos mundos por chegar… Que papel achas que pode ter a criatividade, individual e coletiva? Precisamos uma mudança absoluta ou é melhor ir tecendo o novo desde abaixo, com serenidade, e ligando com outras formas de ação e perspetivas?
Acho que as duas opções são compatíveis: uma mudança absoluta, mas que seja feita com calma e desde abaixo. Embora eu seja, por princípio, partidária da reivindicação da calma e da lentidão, acho que estamos num momento de emergência. Isso significa que não temos muito tempo para tomarmos as decisões radicais que precisamos. As alternativas que temos que inventar devem vir de baixo, pensadas em pequenas redes, mas não temos tempo para ficar apenas na teoria. Nesse sentido, sou otimista porque sabemos os caminhos, mas sou talvez um pouco mais pessimista porque nos vejo paralisadas.
O zolpidem, remédio que se popularizou
como sonífero nos últimos tempos,
é uma excelente metáfora dessa contemporaneidade,
que é a do sono sem sonhos
Essa paralisia vem tanto de fora como de dentro? Há como uma espécie de tecnologia da parálise que intervém parando tanto as ações externas como as tomadas de posição internas em nós?
Acredito que sim. O sistema de produção histérica em que vivemos (produzir mais, ser “a nossa melhor versão”) a positividade tóxica que nos cerca nas redes sociais e na psicologização das conversas acabam produzindo uma estrutura em que é difícil (ou impossível) fazer movimentos radicais. Estamos extenuadas polas horas de trabalho, polas exigências de ter uma vida plena, pola performance de felicidade e realização… O paradoxo é que a agenda lotada, a ação contínua, a falta de tempo para o descanso é a raiz da nossa parálise. As estruturas internas e externas, polo menos no mundo urbano e capitalista, impulsionam um movimento circular que não nos permite sair do lugar. O zolpidem, remédio que se popularizou como sonífero nos últimos tempos, é uma excelente metáfora dessa contemporaneidade, que é a do sono sem sonhos. Um descanso induzido que nos impede de sonhar para extravasar o nosso inconsciente e para visualizar novas soluções.
E, no entanto, a literatura e outras artes, podem permitir-nos acordar deste sono induzido… Antes falaras de Ailton Krenak como um autor interessante, que outras autoras e autores nos recomendarias conhecer desde o Brasil?
Krenak com certeza é um autor incontornável neste momento por muitos motivos. O principal é a renovação do pensamento sobre a nossa posição no mundo, a nossa relação com humanos e não humanos e a nossa perceção do tempo e o sonho. Uma autora que, para mim, é das mais inovadoras na literatura brasileira contemporânea é a Micheliny Verunschk. Ela trabalha algumas temáticas como a herança indígena na sociedade e na cultura brasileiras a partir de uma linguagem poética e simbólica que abre uma alternativa para a reconstrução da história.
Jarid Arraes é outra das minhas favoritas: consegue descentrar a literatura brasileira trazendo histórias contadas em primeira pessoa desde os lugares que tradicionalmente foram objetos literários e não sujeitos, como o Sertão. Ela tem uma presença interessante nas redes sociais, onde fala de forma transparente sobre as dinâmicas de indústria literária. Além disso, é uma boa conhecedora dos gêneros literários menos consagrados como young adult ou horror, que incorpora nas suas narrativas.
Num outro estilo, Natália Borges Polesso, autora daqui do Sul, tanto por temáticas quanto por linguagens, lembra um pouco a norte-americana Carmen Maria Machado ou Carola Saavedra, pelo tratamento literário das angústias contemporâneas, de uma certa distopia apocalíptica, mas também porque imagina saídas e mundos possíveis. Outra autora do Rio Grande do Sul é a Eliane Marques, que inova na elaboração da história, neste caso, da herança escravocrata, de como sobreviver a ela usando uma linguagem fragmentada, simbólica, muitas vezes cruel como a realidade que retrata, atravessada por um interessante trabalho psicanalítico.
Uma autora contemporânea, que foi precursora de novas linguagens na década de oitenta, é Marilene Felinto, que para mim foi uma surpresa maravilhosa ouvindo o audiolivro As mulheres de Tijucopapo.
Para concluir, e só por não me estender demais, porque ficam muitos outros nomes sem citar, encerro com a que é para mim a grande figura da literatura brasileira, a que abriu os caminhos e renovou as linguagens. Conceição Evaristo mudou quase tudo com a publicação de Becos da memória: renovou as temáticas, as vozes autorizadas a falar na literatura, a concepção do que é linguagem literária, etc. À medida que o seu prestígio foi crescendo, nos anos 2010, ela foi adotando uma posição interessante de promover outras escritoras negras, de não ocupar o lugar da figura de excepção isolada no topo. Ao mesmo tempo, pela sua idade, presença e atitude, Evaristo foi-se consolidando como uma figura matriarcal, quase uma ancestral viva, que eletriza uma nova geração de escritoras e escritores. Tivem ocasião de assistir palestras dela em três ocasiões. A energia que desprende e o impacto que a sua presença tem, especialmente na juventude negra, é algo que eu nunca vi num escritor.
Estamos extenuadas polas horas de trabalho,
polas exigências de ter uma vida plena,
pola performance de felicidade e realização
Urge criar novos espaços de comunicação mútua, desde logo. Há algumas vontades individuais, mas não se percebe um projeto claro (ainda) neste sentido. Qual achas que seria possível, e como seria o horizonte estratégico para o que andarmos?
Concordo contigo. Existem ações pontuais, vinculadas a indivíduos específicos e às suas redes, mas não consigo ver que isso se organize em plataformas mais abrangentes, que consigam dar conta de uma normalização da chegada de produtos das culturas produzidas em língua portuguesa à Galiza. Talvez seja uma visão pessimista, mas penso que o reintegracionismo perdeu a oportunidade de se converter em movimento hegemônico dentro do galeguismo, da mesma forma que tenho a sensação de que o galeguismo perdeu a oportunidade de se converter em cultura hegemônica na esquerda. Com isto não estou apontando “culpados”. Não é minha intenção nem estou em posição disso, mas digo apenas que, às vezes, me parece que houvo uma janela de oportunidade no passado, e essa janela fechou.
Há trinta anos tínhamos um tecido associativo muito mais denso que conseguia dinamizar a produção cultural, uma compreensão coletiva e comunitária das ações. Já hoje, numa cultura mediada pelos dispositivos digitais, observamos uma atomização dos gostos e dos consumos. Pensa num fenômeno como foi Mareas vivas. Embora eu, por circunstâncias pessoais, o vivesse um pouco de longe (naquela época não tinha TV), é claro que foi um enorme sucesso cultural com impacto real nas pessoas. O contexto mudou e agora os nossos consumos e formas de vida são cada vez menos comunitárias ou coletivas. Os dispositivos são individuais e isso significa que o consumo cultural como elemento de coesão é mais difícil de identificar. Falo desses consumos digitais porque com o enfraquecimento dos consumos compartilhados é mais difícil apostar por uma estratégia única que nos permita usufruir da vantagem cultural que o galego nos proporciona.
Mas nessa individualização do consumo, surge um paradoxo: os nossos gostos atomizados acabam confluindo para os grandes conglomerados midiáticos de uma forma acrítica, num mercado cada vez mais centralizado e padronizado. O que poderia ser uma vantagem, pois temos acesso amplo a produtos de vários lugares do mundo, em várias línguas, incluída a língua portuguesa, acaba desaparecendo por conta do famoso “algoritmo” que nos empurra a um universo higienizado, instagramável e pautado pelas demandas do capitalismo global.
Ações como “emplacar” uma ou duas séries em galego na Netflix ou tentar impulsar a audiência de produtos audiovisuais brasileiros na Galiza nessa mesma plataforma, pode trazer uma certa representatividade ou abrir novas oportunidades, mas sou cética em relação ao impacto real. Neste ano o Brasil se mobilizou com o sucesso estrondoso de Ainda estou aqui, o filme de Walter Salles baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva. O sucesso ultrapassou fronteiras, Fernanda Torres ganhou o Globo de Ouro e foi indicada ao Oscar, prêmio que o filme ganhou na categoria internacional.
Quando há 25 anos Walter Salles foi indicado ao Oscar por Central do Brasil, protagonizado por Fernanda Montenegro (a mãe de Torres), lembro o impacto e a recepção do filme na Galiza, igual que quando estreou Tropa de elite. Hoje eu não moro mais no país, mas tento seguir a imprensa e não me parece que tenha tido o mesmo impacto, sendo que se trata de um filme falado em português, que trata a temática cara aos setores progressistas da sociedade (o desaparecimento de ativistas durante a ditadura), que foi dirigido polo diretor brasileiro mais famoso internacionalmente e que a figura de Fernanda Torres se agigantou no último ano, inclusive, com aparições estelares nos late night shows dos Estados Unidos. Acredito que, de alguma forma, isso nos fala da desarticulação cultural na Galiza no que tem a ver com os nossos vínculos com os países que falam português.
Parece-me chocante que um filme como As bestas, por exemplo, que reforça os piores estereótipos sobre a Galiza, fosse mais e melhor acolhido do que Ainda estou aqui.
Então, não tenho grandes receitas para resolver os nossos problemas, mas creio que uma ação mais dinâmica de criação de conteúdos nas mídias digitais seria um bom começo, assim como a articulação dos nossos produtores e produtoras de conteúdo arredor de certas pautas como a difusão de conteúdos internacionais em língua portuguesa. Acredito que, sem isso, estejamos deixando passar um dos poucos benefícios da sociedade baseada nas tecnologias digitais.
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Raquel Bello Vázquez: Nasci na Corunha, filha e neta de corunheses que desmentem o estereótipo de cidade burguesa e castelhana, som galega migrante no Brasil desde 2014, onde atuo como professora na UniRitter de Porto Alegre, no extremo Sul do país. Formei-me em Filologia na Universidade de Santiago de Compostela, onde também figem o meu Doutorado. Fum professora e pesquisadora na USC e na UDC, além de professora visitante em várias instituições em Portugal, na Holanda e no Brasil. A pesquisa foi a minha primeira paixão acadêmica, talvez o amor verdadeiro, mas aprendim a amar a docência como um carinho tranquilo e aconchegante. Publiquei artigos e livros como parte do meu percurso investigador, e hoje mantenho um blog (ainda bebé) onde compartilho reflexões aleatórias de leituras achadas por acaso (leiturasaleatorias6.wordpress.com)