Encostada no batente antigo de uma porta roída pelo tempo I Ana Paula Jardim

Encostada no batente antigo de uma porta roída pelo tempo, com outra de vidro que abre e fecha por um sensor. Continuamente. Um casaco de malha com um capuz pela cabeça e franjas que escondem a testa, olho uma chuva miudinha e abundante. Penso que não se deve olhar manhãs cinzentas de óculos escuros. E ainda por cima molhados e salpicados, mas fico no mesmo lugar, ao lado de um cinzeiro cheio de beatas de pessoas que sobem e descem as escadas para matar o tédio e encurtar o tempo. Continuo a fumar um cigarro húmido com a mão erguida e penso que deve existir alguma beleza em alguém que insiste em fumar cigarros em dias de chuva a observar pátios desertos. Se calhar poderia escrever qualquer coisa interessante sobre isto. Um poema talvez, mas hoje não me apetece escrever poemas. Nem conjugar palavras em versos. Só ficar ali a contemplar mais um dia inútil a tentar ditar na mente um texto em linha reta. Com o sensor da porta de vidro a acionar o pensamento com o barulho de um clique. A raspar no chão molhado. O único som que perturba a apatia desolada.
Debaixo de uma pérgula, na hora de almoço, a tentar aquecer e queimar umas ideias que se fixam cada vez mais na testa. E este sentimento diário de aborrecimento e desistência. O penoso arrastar dos pés na areia, ouvi alguém a dizer uma frase que me ficou nos ouvidos: é bom as pessoas terem alguma opacidade. Que terrível banalidade, pensei. Deve ser porque afirmar este tipo de coisas dá um certo mistério e torna-nos mais interessantes. Que muitas vezes utilizamos as palavras de forma vã sem perceber o seu sentido. Existe qualquer coisa de assustador na transparência. E nem me apetece fazer grandes divagações sobre semântica e etimologia. Opaco é algo que, no seu significado comum, se refere a espessura, sombras, escuridão, algo que não deixa passar a luz. Transparente é, no entanto, uma palavra bem mais interessante, já que tem um duplo sentido: por um lado refere-se a algo evidente, claro, inequívoco, facilmente percebido; por outro lado poderá referir-se a algo que deixa passar a luz, mas através do qual não se consegue ver os objetos com nitidez. Demasiada luz cega tanto como a escuridão. Tenho para mim que algo ou alguém que seja absolutamente transparente, tão claro como flash divino é mais equívoco e opaco que a própria opacidade. Se nos pudéssemos ver uns aos outros com absoluta nitidez fugiríamos assustados. Seríamos uma espécie de Medusa cheia de serpentes na cabeça. Petrificar-nos-íamos uns nos outros.
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Ana Paula Jardim nasceu em Coimbra. Licenciou-se em Filosofia e desempenhou funções no âmbito da promoção da leitura e da gestão de eventos na Divisão de Bibliotecas da Câmara Municipal de Oeiras. Integrou, desde finais de 2016 até Maio de 2023, a equipa do Templo da Poesia, do Parque dos Poetas, na área de programação e mediação cultural. No âmbito das Comemorações dos vinte anos do Parque dos Poetas (1ª fase), foi a responsável pela organização e seleção de poemas da Antologia 20 anos 20 autores, com coordenação editorial de Jorge Reis Sá e integrada na coleção Livros de Oeiras. Venceu o Prémio Glória de Sant’Anna em 2021 com o seu primeiro livro de poesia, Roupão Azul, com a chancela da Guerra e Paz Editores. Publicou, em maio de 2022, na mesma editora, o seu segundo livro de poesia intitulado Enfermaria, que veio a integrar a lista dos oito finalistas da 11ª edição do Prémio Glória de Sant’Anna 2024. Rua do Arsenal, publicado pela Guerra e Paz Editores, em Maio do presente ano, é o seu mais recente livro de poesia. Tem participado em diversas Revistas Literárias. Desde junho de 2023 faz parte da equipa da Divisão de Cultura e Artes, do Município de Oeiras.
Créditos da foto da autora: Josefina Melo