“Introduzimo-nos na geometria do dente de leão ” I Poesia de Charo Lopes
01
na embaixada havia uma ilha
na ilha havia um túnel
na entrada do túnel estivemos de pé
um tempo que a mim me pareceu longo
fazia frio
e abraçamo-nos
foi estranho
mas fizemos o equilíbrio
agarrando-nos como dous ursos bípedos
a rotação da terra seguiu
seguiram as marés
passaram muitas cousas
no tempo
em que estivemos
tu e mais eu
na porta do túnel
*
02
viste o interior
as sombras
e fizeste do silêncio um colchão
eu chorei
enchendo de água
o umbigo
como um poço
tu gaveaste polas minhas pestanas
para conhecer o mar do meu país
a minha infáncia
e fizeste do silêncio uma paisagem alpina
um refúgio de montanha
ali
estivemos vivos
descansei
caminhamos da mão
havia uma banheira
e banhamos-nos
como num rito sagrado
e fizeste no silêncio um pequeno-almoço
café fruta fresca pão com aceite
foi um instante apenas
em realidade
o que passamos
na órbita extra-solar
nas portas do túnel
*
03
na ponte entre dous olhares
trençamo-nos
e a carência desapareceu
ou perdeu protagonismo
na redondez da borbulha
na delícia das músicas balcânicas
introduzimo-nos na geometria
do dente de leão
na ilusão do paraíso
do absoluto
mas ao acordar
o buraco segue aí
e vamos ter que nos conformar
com fazer um álbum
com guardar uma carta
na caixa dos tesouros
com saber
que foi verdade
a vida é algo estranho e indecifrável
sussurramos
o nome do planeta
Gliese 581 c
muitas vezes
*
04
podem-se fazer espirais
repetir ciclos
(hospedar o sintoma)
e fazer disso
uma pérola
a mesma música em bucle
repetir mitos
repetir contos
reproduzir a vida
um tempo determinado
o limite
tecer e destecer
abraçar o quotidiano
desabraçar
salvar o íntimo
sobre analisar a herança
matrilinear
construir um túnel
usar palavras usadas
palavras traduzidas
palavras deturpadas
lamber as palavras de outra
beijar-nos e
depois dizer
adeus
*
05
foi um encontro deslumbrante
um acaso
uma coincidência
-foi sucessão, não causalidade-
a sorte é assim
(nego os horóscopos)
e abenço-o o instante
as tuas mãos a passar páginas
a pizza
a bicicleta
o tropicalismo
o rio
a obra de Pierre Bourdieu
a câmara fotográfica
a astronomia
o exoplaneta Gliese 581 c
existe
e vivemos ali um tempo
alimentando-nos de mel e açúcar
no túnel da ilha
numa embaixada qualquer
♦
Charo Lopes (Boiro, 1988) é jornalista e fotógrafa. Como poeta ganhou o prémio Xuventude Crea 2014 por Random do quotidiano, o Fiz Vergara Vilariño, com o que publicou De como acontece o fim do mundo (2016), e o prémio de poesia Cidade de Ourense, com Álbum (2020). Publicou artigos em revistas e em obras literárias colectivas. Participou em exposições fotográficas coletivas A sua primeira exposição individual foi um projeto de retratos a mulheres do rural: Espadela, da mão da cooperativa Arabias; uma mostra que foi exibida por diferentes vilas galegas, incluída a inauguração no Museo do Povo Galego em Santiago de Compostela. Textos seus foram traduzidos para o basco, o finês e o inglês. Como trabalhadora autónoma realiza labores de comunicação e edição, em particular para a Associaçom Galega da Língua (AGAL) na Através Editora e no Portal Galego da Língua. Boa parte do seu trabalho está recolhido no seu site: umalopes.com