“Que a nossa vida pode ser apenas a soma de entardeceres” I Ana Paula Jardim
Gosto de viajar quase ao anoitecer. Naquela transição enigmática de mais um dia que se fecha no horizonte. É uma das banalidades mais belas que se pode contemplar em qualquer existência humana. Um dia que se vai esbatendo numa linha âmbar como resina fóssil. Eletricidade dentro das nossas pupilas. E o que se vê nunca é o mesmo. Um momento de pura efemeridade. Como se fossemos nós mesmos a diluirmo-nos naquela tonalidade avermelhada que barra como tinta os nossos olhos. Da incerteza do futuro. É como uma pequena morte. Um ocaso. Sonhos que se afundam no rio iluminado. Afogados. Que a nossa vida pode ser apenas a soma de entardeceres que vislumbramos no horizonte. Como uma poderosa tela de Monet. Relaxas a cabeça num banco, cruzas os braços e deixas-te ir. E num anoitecer de julho sufocante, janelas abertas, cabelo solto e emaranhado, a brisa morna consola-te. Colocas os óculos escuros e é como se entrasses numa imensa pintura. De sombras, espectros de montes como seres animados, carros a rolar num frenesim, de faróis ligados e viajantes anónimos. Que passam ao teu lado e olham pela janela. O brilho de uma lua cheia escrita no céu como uma premonição. Indiferente à histeria dos homens. E uma tonalidade e luz difícil de descrever de tão forte. Entra por ti adentro como um caleidoscópio de vidros fuscos e vibrantes e fazem com que as lágrimas te corram pelo rosto. Porque percebes como a tua existência não tem importância nenhuma. És apenas matéria insignificante. Uma arbitrária conjugação de átomos. Ninguém. Lágrimas que te chegam aos lábios com sabor a sal e que escondes por detrás de uns óculos escuros e que o teu semblante quieto e alheado não deixa denunciar. Sentes-te esmagada pela beleza de um mundo insano.
De pernas cruzadas sobre umas arcadas antigas, o sol a bater no corpo a derreter as certezas sinto os galhos de uma árvore esfíngica, longilínea e desolada a espetar-me os olhos. Despida por uma tarde de dezembro igual a tantas outras. Solitária como eu. Penso que sempre contemplei o mundo das janelas erradas e que os meus caminhos são estranhos e imprevisíveis. Fico com uma súbita sensação de peso dentro do meu corpo como se, de repente, todas as pessoas que se sentaram no mesmo lugar onde estou entrassem por mim adentro. A árvore seria a mesma. Algumas criadas de servir que não teriam tempo para se deter que a reflexão e o pensamento são hábito de nobres desocupados e enfadados com a vida. E a noite é para dormir para quem tem os ossos malhados pelas escadarias e o cansaço. Avisto, de súbito, a forma de um pássaro preto no cimo de um dos galhos mais altos. Pequeno e imóvel. Sacudido pelo vento. Ocorre-me que os pássaros não usam relógio nem sabem cronologia. Que lhes é indiferente em que século é que voam. Voam simplesmente. Pergunto-lhe em silêncio se sabe o que é a arte porque eu não sei. Ele agita-se, abre as asas e desce a pique. Não responde. Vejo que é uma andorinha e que volteia, em frente, numa dança caótica com dezenas de outras que aparecem sem que perceba de onde. Fazem com que um bando de pombas poisadas sobre a ribeira descole de repente e uma família de periquitos verdes que andam por ali se juntem numa gritaria ensurdecedora. Fico sem resposta, vazia como antes. Não sei se sou inteligente o suficiente para perceber o que tudo aquilo quis dizer ou sequer se existirá alguma coisa extraordinária para ser percebida. E o meu tempo já se esgotou e se perdeu como água que flui entre os dedos. Fico só a contemplá-la a esvair-se nas palmas das minhas mãos. As lágrimas a abrir valas no meu rosto. Poisado sobre a minha pele molhada o negativo de uma fotografia revela-me a verdade numa imagem: um homem, de pé, bate palmas e olha uma rapariga, nascida na primavera certa, como quem olha um pêssego acabado de colher. Jovem e sumarento. Sorri com a verdade que lhe ficou entalada como fios nos dentes. A arte é ela…