“Trancar a chuva de fome” I Poesia de Bendinho Freitas
O PARTO DA LUZ
O canto do galo rouba o silêncio
ao romper da aurora
A madrugada espantada
vai se despindo
molhada de orvalho
enquanto os homens
das terras do fim do mundo
saúdam o parto da luz
Crepúsculo com as horas contadas
foge de mansinho
assediado pelos dedos do sol
num rito de iniciação
abrindo as longas pernas
da estrada do dia
Nas terras do fim do mundo
homens constroem sonhos
com asas de suor
*
MEMÓRIAS DO MBRIDGE
Ela se anunciava
sob entusiástico céu limpo
soltando suas tranças d’águas
Seus cabelos lisos
eram fartas lágrimas
escorrendo em quedas livres
na Serra da Kanda
Sua correnteza
eram ninhos d’águas
guardando cânticos das lavadeiras
consagrados na foz atlântica
No rio Mbridge bichos espreitavam
entre folhas em colóquio
Rochas presas no leito lutavam
com os murmúrios das águas
Mangais acolhiam
um séquito de tartarugas
como se fossem da família
Sob entusiásticos céus
o Mbridge não dorme
*
CONSTELAÇÕES DO LAGO
O lago Dilolo evoca uma colheita
fecunda de emoções
suas constelações de mistérios
cravejadas de solidão
são velhas lendas
psicografadas das águas
são insónias meditando
entre os cabelos soltos da brisa
entre a verde linguagem da vegetação
O lago Dilolo evoca uma divindade
trocando os olhos das águas
sem romper o himen da natureza
uma divindade ardendo
em febres de poesia
O lago Dilolo desenrola palavras azuis
pergaminhos d’águas
barbas brancas de espuma
desmaiam nos braços da terra
quando enguias deslizam
no espelho d’água doce
presas pelo imaginário
das chanas do leste
*
MELODIAS DE ENXADAS
Quando os homens tocarem
melodias de enxadas
assumindo a terra
sem rios de vãs gargantas
árvores acordadas testemunharão
deuses desamarrando as chuvas
como um sonho de pernas firmes
O sol digitará sussurros
prometendo brilhar para a colheita
Trancar a chuva de fome
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Bendinho Freitas Miguel Eduardo, nasceu a 25 de Maio de 1971 em Luanda. Jurista, licenciado pela Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto UAN e Pós-Graduado em Gestão Estratégica de Recursos Humanos, pela Católica-Lisbon School of Business and Economics e Universidade Católica de Angola. É membro da União dos Escritores Angolanos (UEA). Publicou os livros “A Pitoresca Etnia das Palavras”, poesia, edição da UEA 2016 e “Silentes Vozes d’Árvores, poesia, edição da Mayamba Editora 2019. Para além de trabalhar a poesia, dedica-se, paralelamente à produção da prosa, com colaborações ocasionais nos jornais angolanos, onde publica crónicas, contos, ensaios e artigos de opiniões.
Fotografia: Luís Aguiar