Sobre o Fio Encarnado da Diferença I Everardo Norões
“Morreu Fernando Pessoa. Mal acabei de ler a notícia no jornal, fechei a porta do consultório e meti-me pelos montes a cabo. Fui chorar com os pinheiros e com as fragas a morte do nosso maior poeta de hoje, que Portugal viu passar num caixão para a eternidade sem ao menos perguntar quem era.”
Foi o que Miguel Torga escreveu no seu diário numa terça-feira, 3 de dezembro de 1935. O tempo é quase sempre impiedoso com os que fogem da regra. Nem Fernando Pessoa (1888-1935) conseguiu se salvar. Maria Gabriela Llansol (1931-2008) também não.
Há mesmo um fio que une os dois, Fernando Pessoa e Maria Gabriela Llansol. Um fio encarnado, semelhante ao que se entrelaça nos cabos da marinha inglesa, dos quais nunca pode ser retirado sem que o todo se desfaça. Fernando Pessoa multiplica-se em tantos. Maria Gabriela Llansol, por sua vez, conversa com “figuras” que comparecem ao que ela chama de “lugares”. “Lugar”, não território submetido às circunstâncias da geografia onde episódios reais acontecem. Mas sítio imaginário, servindo de cenário a encontros inesperadas do diverso, o que ela denomina de “cena fulgor”. Quanto às “figuras” de Maria Gabriela Llansol, podem ser reconhecidas pelo viés da literatura ou da história. Chegam do passado, mas quando se reúnem nos textos tornam-se contemporâneas.
É como se ela fizesse “baixar” suas “figuras”. A ideia de “baixar” vale para o exercício de uma escrita que tem algo de oculto. Ocorre assim nos terreiros de candomblé, espaço onde desembarcam entidades que comungam situações de transcendência. Ela própria confessa: “O que é meu não é meu, estou na parte do templo destinada aos que vivem envoltos em mistério”. É no chão batido do texto que ela acolhe seus “santos”. A escrita de Maria Gabriela Llansol é o seu “terreiro”. Nele, durante as “cenas fulgor”, ela invoca entidades como São João da Cruz, o poeta da Chama Viva; Espinosa, o filósofo do Deus-Universo; Müntzer, o revolucionário religioso decapitado ou o próprio Fernando Pessoa. Nas “cenas fulgor” o que há de passado apenas serve como elemento de ruptura. São rebeldes ao tempo histórico. Nelas, Maria Gabriela Llansol nos faz mergulhar num futuro, pouco importa a temporalidade de seus personagens. Suas cenas podem ser comparadas àquela que lemos no poema de Alberto Caeiro, quando ele descreve o encontro com Jesus Cristo crucificado tornado menino num dia de fim de primavera.
Enquanto cozinhava o jantar meditava que visionava numa escrita viva
que poderia tomar por um encontro. A meditar, justificava o seu desejo de solidão
a solidão não é mais do que salvaguarda da escrita
quando o desejo se apresenta.
A solidão é a defesa do texto.
Maria Gabriela Llansol cozinha enquanto escuta cantatas de Bach (“a música já não é minha, percorre o corredor do espaço até a sala de jantar onde, numa certa cena, construí a minha infância”). Conversa com suas “figuras” com a familiaridade de quem confessa ter nascido “no decurso da leitura silenciosa de um poema”. Nenhum texto ou meditação lhe servem, conforme confessa, além de sua própria escrita. Ela cria um exílio dentro de seu exílio real. Invenção de uma língua dentro da língua.
Em 1962, Maria Gabriela Llansol publica seu primeiro livro, Os pregos na erva. Portugal é ditadura e atraso. Três anos depois, seu marido torna-se objetor de consciência, recusa combater na guerra colonial de Angola. Os dois fogem para o reino da Bélgica, onde vão residir por quase 20 anos na região francófona do Brabante.
Na cidade de Jodoigne, Rua de Namur, somam-se a um grupo de alunos da Universidade de Louvain. Fundam uma escola comunitária para ensinar filhos de estudantes de diferentes origens. Oferecem novos métodos de ensino para que as crianças possam descobrir um olhar diferente sobre o mundo. O grupo ocupa uma mansão, a Quinta de Jacob. Da experiência, surge sua trilogia Geografia dos rebeldes, que se abre com O livro das comunidades (1977), seguido de A restante vida (1983) e Na casa de julho e agosto (1984). O livro das comunidades resultou, segundo ela, de sua tentativa de trazer à fala e ao convívio uma criança aparentemente autista. Desde então, Maria Gabriela Llansol não cessa de escrever, num exercício cotidiano frutificado em inúmeros livros e quase cem cadernos, hoje catalogados no Espaço Llansol, na cidade de Sintra, à cura do escritor e crítico João Barrento.
Percorri muitas vezes as ruas da cidade de Jodoigne nos tempos em que ela viveu por lá. Quem sabe num dia qualquer nos cruzamos na cidadezinha belga. Na padaria ou no açougue, que mais parecia sala de hospital, o dono num avental branco impecável, cercado de seus instrumentos “cirúrgicos”. Talvez na igreja de Saint-Médard, monumento do século XIII, construída com pedra de Gobertange, famosa no país flamengo. Ali, ela bem poderia estar esperando por São João da Cruz. Ou apenas pelo rosto de São João da Cruz, que ergue seu outro rosto e senta-se “onde há lugar e principia a bordar palavras com o dedo sobre o corpo incompleto de Müntzer”.
Nem tudo é real, nem tudo é mistério, pois “os círculos do obscuro não são totalmente infernais, nem os ângulos do paraíso totalmente luminosos, num e noutro há impostura”. Eu estava ali. O que importa é o que guardamos de estranhamento e de beleza quando somos trespassados pela escrita de Maria Gabriela Llansol.
Escritora da família das diferenças, mesmo em Portugal é pouco conhecida. Sua trajetória vai ser parecida com a do autor de Mensagem. Críticos como Eduardo Lourenço pensam assim: depois de Fernando Pessoa, Maria Gabriela Llansol será o próximo grande mito da literatura portuguesa, fenômeno misterioso, vindo de uma outra espécie de planeta.
Não é fácil se equilibrar sobre as linhas de O livro das comunidades ou de Um falcão na mão. O exercício exige uma espécie de amor semelhante ao funâmbulo de Genet pelo seu arame. Mas logo chegamos a um canto de jardim à beira de um riacho numa paisagem de Brueghel, onde conversam Müntzer e São João da Cruz e Ana de Peñalosa. A aura de Walter Benjamin que os recobre nos certifica que a beleza da literatura redime o absurdo.