5 poemas do livro “Nas mãos a sede dos pássaros” de Lília Tavares
Chamam-lhes sonhadoras, inconsequentes,
aventureiras. Sentem-se dissolver na poesia ainda que
escrevam em prosa. A diluição de si nos personagens arrepia.
Fingem alegria quando sonham. Assistimos ao seu
desabamento interior num mar assolado pelo nevoeiro.
Estranham-se aos pedaços.
Entranham-se sem estenderem a mão em busca de
salvamento.
São mulheres múltiplas, revelam-se num ápice.
Escrevem livros duros e ásperos e doces. Oferecem ao
leitor colheradas de mel como se o tivessem tomado
no passado.
São mulheres da interioridade. Anónimas. O que não
se conhece, estranha-se sem desgosto, pensam.
São mulheres que nada têm a perder. Aceitam
desiludir.
Desiludidas, escrevem até conseguirem arrancar das
profundezas o avesso da alegria, as causas mais
inóspitas da revolta, do desânimo, da inquietude.
Elas parecem loucamente incompletas como sylvia
plath. Choram porque leram anna karenina, líquidas
como as memórias que dizem tornar a solidão
habitável. Por que escolhem pieter bruegel para a
capa dos seus livros?
*
Elas escrevem.
As palavras oferecem-lhes
o dorso como gatos
a dormir enroscados.
Elas dão-lhes carinhos imensos:
pêlo aqui,
lambidela nos dedos
ronrons que sossegam.
As palavras das bocas dos
gatos não começam por “h”,
não precisam do “til “
ainda menos de maiúsculas.
São maciez preguiça completude
proximidade segredo.
Palavras escritas com gatos
são metáfora
e transferência
num pulo
e
adormecem.
*
Que nada nos defina. Que nada nos sujeite. Que a liberdade
seja a nossa própria substância.
Simone de Beauvoir
Há mulheres que, ávidas,
lêem em bibliotecas ou pedem
emprestados às amigas livros
ilícitos
vedados.
Escondem beauvoir
na gaveta da roupa íntima.
“Se leres, tornas-te vadia
suja,
vais saber demais e
os homens detestam
mulheres insolentes e altivas.
Vais desnortear-te.”
O futuro era só mais uma história que
lhes tinham ensinado a ler
entre silêncios, filhos,
fome de desejo.
Elas escolhem denegar o passado.
O presente não tem de ser o fruto
de uma árvore fragmentada.
*
Há mulheres que esperam cravadas numa
concha de solidão.
Mordem as mãos para se sentirem vivas.
Descem à intimidade do mar para compreender a
melancolia dos peixes.
Como veias das mãos, abrem canais no arvoredo
para se ocultarem.
Amiúde sentem temor, pois é no coração que
guardam um a um os seus medos.
Como corujas, cerram os olhos longamente. Têm a
visão audaz das aves nocturnas.
Misturam-se em tramas de inquietude para tomar o
gosto do espanto das sombras.
Retornam à claridade e expelem do corpo, lugar
desabitado, todas os fragmentos da
inutilidade do tempo.
Sobem torres.
As mulheres.
*
Há mulheres que deixaram a natureza entregue
a si própria.
Já raramente se ocupam dos vasos e do jardim.
Todas as coisas parecem estar à solta, numa
liberdade sem limites.
A tesoura de poda, as pás, a vassoura há muito que
pingam gotas de ferrugem encostadas a uma porta
em cujas ferragens a erosão do tempo passou sem
piedade.
Elas não são indiferentes nem despreocupadas.
Saem à rua para ver o sol nascente. Para verem o
afogueado crepúsculo espreitam pelos vidros da
janela na parede oposta à porta.
Não as vêem sair com crianças.
“São mulheres sozinhas, sem futuro”, murmuram.
De facto, recebem poucas visitas e em datas certas.
Nesses dias mostram o seu riso através do cabelo
desgrenhado, sem corte.
Quem não lhes conhece o íntimo, chama-lhes
mulheres que têm um quarto só para si.
Moram numa casa de paredes cheias de livros,
folhas, tinteiros, lápis e uma máquina de escrever. A
cadeira da secretária é velha mas conhece-lhes os
contornos do corpo. Têm um candeeiro aceso junto
da pilha de livros e papéis rasurados.
Como virginia woolf, tiveram de fazer escolhas.
Aniquilaram o fantasma da fada do lar.
Sentam-se cada dia à secretária e deixam-se levar
por personagens, amores e enredos que escrevem
com os dedos nas teclas da máquina. Por vezes
param e anotam umas palavras e riscos numa folha.
Preparam um chá e voltam a escrever.
Uma certa manhã prendem o cabelo num rolo,
passam pelo rosto um creme guardado e tiram do
roupeiro o fato de saia e casaco, os sapatos e a mala.
Enlaçam no pescoço um lenço mais colorido.
Abrem a porta e levam na mão uma capa de pele
preta muito volumosa. Sobem para um autocarro na
paragem. Sentam-se apreensivas. Não sabem se
desta vez vão ler o seu nome na capa do livro. Estão
fartas de assinar os livros com george, joão e outros
nomes.
♦
Lília Tavares, nasceu em Sines, Portugal. Começou a escrever textos poéticos aos treze anos e comprou os primeiros livros de poesia na livraria Tanto Mar, do poeta Al Berto. Em 1979 editou, “Fusão Crepuscular e outros poemas” e colaborou nos primeiros números do Jornal dos Poetas & Trovadores, como correspondente no Alentejo, de 1980-83. Após um longo interregno dá à estampa em 2013, “Parto com os Ventos”, obra republicada em 2023, numa edição revista e aumentada que inclui um novo lote de inéditos. “Evocação das Águas”, 2015; “Sem Luar”, haicais, 2015; “Nomes da Noite”, 2019, “Bailarinas de Corda” (Poética Ed., 2019, e “A Timidez das Árvores -Nov., 2020; 2ª ed, jan. 2021, título que inaugura a colecção Mãos de Semear-livros de Lília Tavares na Editora ModoCromia) e “Casa de Conchas” (Mar., 2022), com prefácio de José António Falcão, são outras das suas obras. Em Julho de 2024 publica “Nas mãos a sede dos pássaros”, segundo volume de uma trilogia iniciada com “Bailarinas de Corda”, agora em 2ª edição, ambos pela Poética Edições. “Casa de Conchas” vê a sua 2ª edição lançada também em 2024. A autora está a finalizar o 11º livro a solo que espera publicar em Novembro. Em 2021 co-organizou e seleccionou textos inéditos de 123 autores em “Água Silêncio Sede”, antologia Poética em Homenagem a Maria Judite de Carvalho no Centenário do seu nascimento. (Poética Ed.). Participa em dezenas de Antologias e Colectâneas em Portugal, em Espanha (Galiza e Extremadura) e América Latina. Organiza eventos poéticos e possui no Facebook, a Página Quem lê Sophia de Mello Breyner Andresen, em co-autoria com Carlos Campos. Profissionalmente exerceu Psicologia Clínica. É casada, mãe e avó. Gosta de ler, de gatos e de jardinagem.