“Saudação a Álvaro de Campos” I Uxio Outeiro
Lugo do denso nevoeiro, oito de julho de dois mil e vinte e quatro.
Hé-lá-á-á-á-á-á-á-á-á-á-á-á-á-á-á-á
Nesta Galiza mínima do universo vasto que engoliu o tempo,
eu te saúdo, Álvaro de Campos.
Viva, voyeur das rodas dentadas e da luz das lâmpadas.
Olá, poeta duma Lisboa enfezada pela maquinaria pesada
e de barcos no Tejo a flutuar partidas.
Nesta cidade provincial que devia colmatar os meus anseios de ser feliz no mundo,
deste ponto qualquer do tempo-espaço, puramente casual,
nesta precisa convergência de circunstâncias que podia ser qualquer outra,
atravessando um século e o território fantasma duma cultura imaginada,
eu te saúdo, Álvaro de Campos,
poeta sensacionista. Eu, Uxio Outeiro,
que ainda não compreendi de todo que coisa seja o sensacionismo,
alargo esta mão através da teia da aranha dum tempo sem limites.
Esta mão que são só versos que a ninguém interessam,
esta mão impotente de mudar o mundo, a não ser coisas comezinhas,
configurada imagem, simples metáfora, esta mão
que aperta a tua, irmão das letras e da vida,
é tudo o que tenho para oferecer
mas ofereço
e agora estamos de mãos dadas no universo.
Hé-lá-á-á-á-á-á-á-á-á-á-á-á-á-á-á-á-á-á-á-á-á-á-á-á-á-á-á-á,
poeta de engrenagens e motores candentes!
Viva, sensor de máquinas que sonhavam futuros!
Daqui te saúdo, destes cem anos já corridos,
e num computador que tu nem sonharias.
Passou o tempo e o mundo continua.
Existem, sim, estes engenhos novos, que acompanham os dias,
e as velhas engrenagens no coração que rodam.
Passaram guerras, pessoas que se amaram aos milhares,
e aos milhares morreram e mataram.
Passou o século mais rápido da história da humanidade toda
e as máquinas que te excitavam são apenas sucata.
Talvez o mundo já nem se conheça,
mas os seres sencientes, estes seres
digamos que humanos, que pensam coisas e mais coisas,
e sentem e sentem, sem parar pra pensar que sentem,
por baixo de tabuletas, ou coisas como luzes de néon ou sinais na estrada,
esses seres, iguais a ti e a mim, continuam na mesma.
E eu sou só um, aqui sentado.
Eu sou apenas este, e daqui te saúdo.
Vejo-me em ti, poeta dos ritmos longos que transbordam a boca.
Em ti que já morreste e não nasceste. Tu,
engenheiro dos versos, como eu poeta da vida,
és um espelho bêbado em que mergulho inteiro
e saio à superfície neste tempo,
deste lado do século virado como uma folha solta
em que escreveste o teu corpo e me nasceram.
Em ti me vejo, Álvaro de Campos,
no amor que abraça as sensações sentidas,
no sentir-me pensar sentindo o pensamento
e nesta inquietação que faz tremer os ossos e as palavras.
Eu entendo e não entendo que coisa seja o sensacionismo.
Sento-me cada manhã com as pernas cruzadas,
respiro a calma de me saber inútil,
maravilhosamente inútil,
(porque não é necessário ser útil para ser completo)
e vivo o modo como a consciência é a superfície limpa
que reflete os fenómenos que aparecem.
Sei, porque aprendi a saber, que o pensamento é uma porta dos sentidos,
e observo como as coisas se sucedem,
e vivo a mente a observar ideias na cabeça,
igual que um olho pensa até onde alcança a vista,
e o coração tinge tudo das emoções que nascem encadeadas,
e tudo é igual de válido,
contacto do ser com a consciência.
Incluso a ideia de eu ser eu é apenas um reflexo
nas águas desse espírito
e uma mentira repetida uma e mil vezes.
Vou ao terraço e fumo um cigarro que se consome à minha vista
e penso em ti.
Eu, que deixei de fumar, embora a vida mo concedesse,
e voltei a fumar porque a vida não mo concede,
acendo o tabaco para observar o fumo a esvaecer a consistência de tudo,
e tudo é este fumo que absorvo nos pulmões
e saboreio a insubstancialidade de eu ser quem sou
e o mundo ser o mundo.
O que será ser eu?
Em cada pessoa que me observa e fala
reflete-se uma máscara que pensa que me sabe.
O caixa que me atende na fila do supermercado
terá uma imagem de mim.
A minha aluna que me vê trabalhando numa escola de línguas,
o inspetor de educação que lê os meus resultados
e um dia me deu a mão cumprimentando,
a criança que me vê a passear os cães e a pessoa adulta que a acompanha,
o amigo que bebe comigo e ri das mesmas anedotas,
e a pessoa que nos vê a rir na mesa ao lado,
todos sabem de mim o que não sei,
enquanto penso de mim o que não sabem.
E tudo é eu, incoerentemente,
e tudo é verdade, e tudo é tudo, e sempre
contacto das ideias com um olho que pensa.
Mas assomo-me às páginas que um dia tu escreveste
e vejo um eu mais fundo que aquilo que consigo imaginar e escrevo.
E leio-me a guiar um Chevrolet pela estrada de Sintra,
eu, que já levei o meu carro pela mesma estrada,
e nada tinha de especial,
ou cumprimento o Esteves que não tem metafísica,
tendo deixado de falar ao Estévez, que provavelmente me odeie.
E nessa vivência de palavras que se reflete no todo,
sei que sou eu, mais além do presente,
mais aquém da convergência de acasos que me fazem ser este,
mais claramente que a máscara que me colam à cara.
E assim estendo esta mão em versos para agarrar a tua,
e sinto, com a clareza extrema refletida no todo,
que se misturam numa mão única que me escreve lendo
e sei que o tempo é uma miragem.
Viva, poeta do presente, tremor pungente perante a vida inteira,
presença do universo numa carruagem de elétrico
a confundir equanimidade e indiferença.
Saúdo-te e sei-te parte duma existência minha.
Saúdo-te em mim, nestas palavras vagas
e no cosmos aberto nas minhas mãos que o escrevem.
Saúdo-me em ti, na recursividade infinita do tempo que não para,
e no sonho de me apertares a mão que não transpira mas sente
que queres saudar-te em mim.
E brilha no universo escuro esta presença absurda, que somos tu e eu,
como uma lâmpada incandescente, depois de carregar no interruptor da vida.
Eu visto o teu estilo e dispo-me de toda máscara.
Serei um heterónimo de não-sei-quem?
Talvez de ti, de Álvaro de Campos?
Como um trejeito eterno que salta de cara em cara,
uma expressão imóvel que passa de corpo a corpo,
de século em século e de vida em vida,
(ou talvez esse gesto se mantenha imóvel
e seja o mundo a lhe passar por cima)
poisaste em mim agora,
como todas as vezes que li a Tabacaria,
e escrevo isto que escrevo e ao mesmo tempo leio
e penso se provará que sou sublime.
Abram-me ao peito as comportas dos poemas velhos
e entrem por elas os meus tremores d’hoje.
Perambulem nas ruas duma Lisboa imaginada as certezas todas duma vida
e apartem-se avisadas por uma luz que pisca.
Pelos carris deste ritmo que antecede as palavras e as ideias,
passa agora um comboio rangente de incertezas
e dentro viajas tu, e o meu coração contigo.
Eu sei que sei que não serei um génio, embora sonhe que posso escrever versos.
As brancas na cabeça, as forças do ânimo já fracas,
o cansaço de imaginar-me igual a outros
que ganharam os prémios e os aplausos,
convidam-me a abraçar uma falência,
deixar cair as mãos, aceitar a derrota,
nestes braços que tremem a intuir a morte.
Mas pesa em mim uma criança que se sonhou poeta
e insiste em se colar à minha perna.
Tento apartá-la com a mão, mas morde.
Busco um adulto que queira apadrinhá-la, e nada.
Tento falar com ela, convencê-la
da inconveniência de perder o tempo,
da dor de só tentar abrir a boca, e da impotência
dum coração que arruga a pele das palavras,
e só me saem versos pela boca.
E a criança sorri com alegria.
Cada dia que passa fico mais longe da pessoa que era
e da memória antiga em já fui infância.
O que pensarás tu do tempo que agora habito, Álvaro?
Somos pautados num ritmo em que as agulhas do relógio
são apenas metáforas antigas.
A precisão dos circuitos elétricos
de simples telefones
é uma roda dentada de dimensões imensas
em que temos a obriga de encastrar-nos.
Tu, que escreveste um tempo de máquinas recém paridas
e amaste a exactitude de toda a ferralhada,
o que pensarias hoje
de não habitar o tempo, mas antes ser habitado
por este tirano interno que nos mede até as vísceras?
Quanta ironia habita nas palavras do teu apelido espúrio.
Nos verdes campos, os olhos abrem pálpebras, as pupilas descansam
e os pensamentos pastam pacientes na consciência fresca
dum Alberto Caeiro que parece impossível.
Não, nunca foste “de campos”, se tivesses sido,
não haveria a inquietação de te sentires “pessoa”.
Não, nunca foste “de campos”,
como eu não sou de mar, embora o sonhe, e muito menos de “outeiro”.
O nosso coração está moldado aos muros e às paredes,
às linhas artificiais das superfícies planas dos prédios de betão armado,
por entre as quais buscamos cegos um horizonte aberto,
ver os montes de Lugo, ou a barra do Tejo,
ou as pessoas únicas que ocupam as ruas mortas,
alguma imperfeição que fuja à retidão do pensamento
que constrói absolutos
e destrói a beleza da realidade simplesmente diversa.
Saio outra vez ao terraço e volto a fumar um cigarro
e tento olhar ao longe o território largo que moldou o tempo.
Por entre os edifícios e o espaço aberto que deixam as esquinas,
distingo a imensidão da natureza que sobrevive ao homem.
Tento manter a olhada na amplitude do todo,
mas os olhos apreendem as antenas que se erguem entre as árvores,
ou as luzes do hospital que plantaram no monte,
ou essa luz que pisca, lá no meio do nada, e não sei o que é.
E só posso pensar que em cada ponto há pessoas que se sonham,
igual que eu me sonho, vitoriosas em nada,
perdedoras do todo, fracassos universais entre quatro paredes.
E sei que, se em vez de estar em Lugo no terraço,
estivesse em Lisboa, a olhar o Tejo aberto,
os olhos retalhariam barcos ou gaivotas,
ou boias a flutuar num universo aquoso,
e sonharia as idas e as chegadas dos portos absolutos
e uma Lisboa eterna.
Volto dentro da casa, apagando a beata no cinzeiro,
e abraça-me um cansaço novo, no corpo em que me redescubro.
Entre cigarro e cigarro fez-se uma noite eterna, e pesam
a mente no coração e as pestanas nos olhos.
Sinto gripar aos poucos o motor das palavras
e esvaecerem-se as sombras à luz das lâmpadas de casa,
e imagino as sombras da gente que caminha lá fora a se alargarem,
recursiva e obliquamente, com os candeeiros da rua.
O mundo convida o mundo a se deitar agora
e eu, que também sou mundo, queria convidar-te para sonhar comigo
e fi-lo a estender-te a mão e saudar-te.
Amanhã, quando acorde, voltarei a cruzar as pernas
e serei, mais um bocado, o mundo em mim comigo
e acordarei um pouco mais, e voltarei a sonhar acordado
um dia-a-dia qualquer consecutivo.
Mas por hoje chegou de me sonhar poeta.
Vou para cama, que quererás voltar para onde estavas.
Eu deitarei o meu corpo no colchão, entre os lençóis macios
e tu voltarás a não ter existência.
Por isso te cumprimento finalmente, ó Álvaro de Campos.
Um grande abraço! Adeus! Arrivederci!
Com um aceno simples de cabeça,
solto-te a mão, enquanto pisco um olho
e caio a um universo dualista
em que eu sou eu, e tudo é cada coisa.
Até outro dia, amigo, até outro dia!
Fecho este arquivo no computador, que já chegou muito longe,
clico no ícone “guardar”,
e sinto ainda que também me acenas,
não sei bem como, um adeus em silêncio.
Recolho-me no quarto para fechar os olhos
e volto a uma existência sem poema.
♦
Uxio Outeiro nasceu na Ilha de Arousa, Galiza, em 1976. Publicou os livros de poemas Às Vezes Vida (Ateneo de Pontevedra, 2002) e Mordida (Através, 2012). Foi incluído nas antologias O Trazo Aberto (Deputación de Pontevedra, 2002) e A Boca no Ouvido de Alguém (Através, 2023). Mantém desde 2003 o blogue Intra (https://eugeniote.com). É instrutor de buddhismo zen, prática que mantém há mais de 20 anos. Atualmente mora em Lugo, onde leciona português como língua segunda na Escola Oficial de Idiomas.