5 poemas do livro “Rua do Arsenal” de Ana Paula Jardim
Catedrais
Não te oponhas se te disserem que és insignificante
Que nada tens de teu que seja digno de registo
Nem voz, nem talento, nem carne
Que não passas de uma enorme massa orgânica
Um breve eco quântico
Um comprimento de onda num rádio avariado
Escuta esses emissários emplumados
Panfletários
Suspensos como corvos falantes na esfera celeste
Numa grande catedral em ruínas
Dentro da Via Láctea
Arcos ogivais
Descarnados
Altares destruídos por aglomerados globulares
Repletos de pedras nuvens moleculares
E cálices de poeira interestelar derramada
Senta-te no meio dessa plateia de Galileus mendigos
Anãs vermelhas de roupas esburacadas
E nos sorrisos verdades desdentadas
Junta a tua voz à voz desses profetas malditos
Como um bando de aves exiladas
Flamingos coxos com as patas enterradas num pântano
Soletram récitas que encontram escritas nas esquinas da cidade
Nos passeios por onde passam
Na soleira das portas onde dormem
Abandonados.
*
Igreja de São Domingos
Entras dentro da igreja numa penumbra assombrada num dia de Verão
De mármores gélidos e magníficos
Escurecidos por incêndios e fogueiras da Inquisição
Nas abóbadas imponentes ouvem-se gritos chamas
De mártires e hereges inocentes
Cordeiros circuncidados em cima de uma tábua
Num dia de Páscoa
Nas paredes está escrito o nome de um Deus (a)traído
Pelos crânios de criança desfeitos
Esmagados no pó da intolerância
Corpos de mulheres esventrados
Presos nas ranhuras das pedras
Ficas calada num silêncio dissonante
Sem escala musical ou harmonia cósmica
Sentada numa imensa assembleia vazia
De cadeiras em fila como um coro invisível de condenados
Entre alguns paroquianos e turistas que tiram fotografias
De gente despedaçada
E como fantasmas nas suas lentes captam
Mas não sabem
Olhas o homem curvado à tua frente
Em penitência
Que fixa o mesmo chão envergonhado
E os teus pés fechados numas sandálias escravas
Pretas e cruzadas
Empoeiradas.
*
Ficções
Podes sempre ler Pessoa sem nunca tentares ser Pessoa
Citá-lo até à idiotia que nada te acrescenta
Cada um de nós tem os seus teatros internos
Alter egos monstruosos que tricotamos numa manta
Ponto por ponto
Cada escritor é apenas leitor de si mesmo
Como Dom Quixote foi leitor de Cervantes
E Hamlet espectador de Shakespeare
Disse Borges
Em Outras Inquirições
Um escritor pode ser apenas a ficção de um leitor
O leitor a ficção de um escritor
O resto é literatura
Ou poesia se quisermos
Pensei nisto enquanto comia um sonho com açúcar e canela
À mesa da pastelaria.
*
Taxímetro
Um génio da física conduz um táxi
Parece um Einstein enlouquecido de cabelo branco
Mudo
Tem no rosto uma poeira dourada de galáxias incógnitas
Corridas sem taxímetro que ficaram por fazer
Morreram no fundo dos seus olhos
Desacelerados pelo amor
Um génio da física conduz um táxi
Usa uma camisa de mangas vincadas
Curtas
Engomada com muitos axiomas
Esquecidos
Proposições que deixa cair nos caminhos
Que já conhece de cor
E que percorre todos os dias
Um génio da física conduz um táxi
Como um autómato mecanizado
Estacionado num único ponto com infinitas retas
Que lhe atropelam a vida
Desfigurada
Como um sopro de mau hálito
Euclides rejeitado de mãos ao volante
Gestos suaves
Medicados
Há uma poeta sentada no banco de trás
Não indica o destino.
*
Cartas Náuticas
Envolta pela mítica luz de Setembro
Que se reflecte no imenso estuário do Tejo
Turvo
Como um manto costurado por navegantes
O rio veste-me
Por inteiro
Caminho descalça no paredão
Avançando por entre marinheiros e infantes
Anónimos estrangeiros com óculos exploradores digitais
E a sombra de um poeta que ergue um livro
Com mais de oito mil versos em pedra
Lioz
Mas que em vida foi esquecido
Avisto-te ao longe por entre a multidão
Com a tua farda de botões prateados
Os teus passos firmes
Ofuscantes
Caminham na minha direção
Ficamos sentados à beira-rio
Abraçados
A escrever com o coração cartas náuticas
As pernas baloiçando nas águas
Nossos olhos caravelas impossíveis
Cheias de gaivotas brancas poisadas nos panos
Digo-te, finalmente, tudo o que não te disse
Antes.
♦
Ana Paula Jardim nasceu em Coimbra. Licenciou-se em Filosofia e desempenhou funções no âmbito da promoção da leitura e da gestão de eventos na Divisão de Bibliotecas da Câmara Municipal de Oeiras. Integrou, desde finais de 2016 até Maio de 2023, a equipa do Templo da Poesia, do Parque dos Poetas, na área de programação e mediação cultural. No âmbito das Comemorações dos vinte anos do Parque dos Poetas (1ª fase), foi a responsável pela organização e seleção de poemas da Antologia 20 anos 20 autores, com coordenação editorial de Jorge Reis Sá e integrada na coleção Livros de Oeiras. Venceu o Prémio Glória de Sant’Anna em 2021 com o seu primeiro livro de poesia, Roupão Azul, com a chancela da Guerra e Paz Editores. Publicou, em maio de 2022, na mesma editora, o seu segundo livro de poesia intitulado Enfermaria, que veio a integrar a lista dos oito finalistas da 11ª edição do Prémio Glória de Sant’Anna 2024. Rua do Arsenal, publicado pela Guerra e Paz Editores, em Maio do presente ano, é o seu mais recente livro de poesia. Tem participado em diversas Revistas Literárias. Desde junho de 2023 faz parte da equipa da Divisão de Cultura e Artes, do Município de Oeiras.