Noite clara. Tempo manso e veloz. Uma rasga-mortalha mandou o seu canto fúnebre. Minha mãe dizia que o canto indicava casamento ou morte. Como se fossem os opostos: felicidade e tristeza. Eu estava na linha dos acontecimentos. E brutalmente acometido de melancolia. Guinha, meu amigo de infância, disse que isso tinha a ver com o abuso no consumo de drogas; que ele também estava assim, ferido, abatido. Namorava com Érica, que, cravada de obsessão, sempre que brigávamos dizia que ia se matar. Ela, sim, era doente em alto grau – e, à época, eu não achava que uma palavra do que dizia fosse verdade. Era, além de tudo, dramática. Numa queda, em que ralou o joelho, quis ir ao hospital para fazer exames, porque jurava ter fraturado a rótula. O drama foi dissipado com um tranquilizante, que os médicos deram, alegando que ela estaria, possivelmente, com síndrome do pânico; que era algo muito corriqueiro, dada a urgência dos nossos dias. Saía com Guinha e Bengala para as noitadas regadas a uísque vagabundo e cocaína. O dinheiro vinha do meu pai, dono de uma pequena mercearia de bairro, porque eu, quando podia, lhe ajudava. Já tinha desencanado dos estudos. Meu pai decretou: ou trabalha, ou estuda. Preferi fingir que trabalhava. Arrumava uma coisa aqui, outra ali, para mostrar que fazia algo. A minha obrigação principal era a entrega das águas. Rodava o bairro, na fissura, entregava o que dava e, para os insistentes, dizia que a água da marca tal estava faltando. Meu pai reclamava da diminuição das entregas. Eu queria mandar tudo para o espaço. Às 17h, saía do emprego e ia para a casa da Érica ou dava uns botes com os comparsas. Numa noite em que sumi com Guinha, quando cheiramos todas as carreiras possíveis que o nosso dinheiro dava conta, ao chegar em casa, meu pai disse que tinha ligado para todos os hospitais atrás de mim, e falou o pior: Érica estava no hospital por overdose de remédios; teve uma parada cardíaca e estava com insuficiência renal. Dois dias depois, Érica veio a óbito. Eu quis me matar, por minha razoável culpa. Mas a verdade é que não tive coragem. Ao mesmo tempo, estava com ódio de Érica, que mudou o meu destino. Por conta dela, pedi ao meu pai para me internar numa clínica. Não aguentava mais lidar com a minha vida, mundana, absurda. Poxa, eu já estava pronto para acabar o relacionamento. Não tive forças, a covardia é minha amiga. Foram anos dizendo: “Estou limpo, só por hoje”. Estou limpo, mas brabo, doente. Joana é uma santa que encontrei pelo caminho. Ela me ajuda, no que pode, e não sei até quando. Ainda tenho pesadelos com Érica gritando. Na última vez em que encontrei Guinha, ele estava acabado, voltou a consumir drogas e morava na rua. Foi a dor mais doída. Que não me pegue a desgraça, só por hoje; só por hoje.
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Adriano B. Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará (Brasil). Em 2018 lançou seu primeiro romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”; em 2021 o romance “Em mim, a clausura e o motim”, pela Editora Penalux; e em 2022 a coletânea de contos “Não há de quê”, pela Editora Folheando. Colabora mensalmente com as Revistas Mirada, Samizdat e Vício Velho. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária e em Revisão de Textos. Membro do Coletivo de Escritoras e Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.