DO MITO À “JORNADA DO HERÓI”
The Hero’s Journey […] the birth of a new person with new self-knowledge and self-awareness can be extremely liberating.
Julie Willans
Introdução
No cerne das antigas narrativas mitológicas, encontra-se uma jornada que transcende o tempo e o espaço. Essa jornada ecoa nas profundezas da psique humana, ressoando através das eras. É a jornada do herói, uma estrutura narrativa ancestral que nos convida a mergulhar nas complexidades da existência humana, a confrontar os nossos medos mais profundos e a descobrir a verdade essencial que reside dentro de nós. O que pretendemos, com este ensaio, é explorar não apenas a superficialidade das aventuras heróicas tão presentes nos livros, nos filmes e nos jogos que todos consumimos, mas também abordar a sua significância filosófica e psicológica. Ao contemplarmos a jornada do herói, embarcamos numa jornada de autoconhecimento e transcendência, onde cada desafio enfrentado e superado se caminha em direção à realização pessoal e a uma compreensão mais profunda da nossa natureza humana.
Desde sempre que o Homem gosta de ouvir e de contar histórias. Não é por acaso que Barthes (1977) referiu que a narrativa está presente em todos os tempos e lugares e em todas as sociedades, começando com a própria história da humanidade. Narrar é mais do que contar ou relatar eventos; é atribuir um significado à vida, é transmitir o conhecimento de uma ação humana, ou mesmo alcançar um entendimento sobre um determinado fenómeno. As narrativas são apresentadas em diversos meios, seja nos livros, nos filmes, nas animações ou até nos videojogos, numa infinidade de meios na contemporaneidade.
Nesse contexto, o conceito de narrativa ganha uma relevância maior, sobretudo em áreas com as quais atuamos, como é o caso da artística e da humanística. O interesse pelo estudo aconteceu sobretudo durante a mudança de paradigma, ocorrida em meados do século XX, quando se começou a questionar sobre o papel das narrativas na produção e representação de mensagens e significados, bem como nas percepções e efeitos resultantes. Considerando essa amplitude de atuação e a sua multiplicidade de géneros e manifestações, torna-se evidente a valorização do mito e sobretudo da “Jornada do Herói” no nosso texto. Elas revelam-se importantes ferramentas, promotoras de um potencial criativo e transformador inerente a cada um de nós; ideia já expressa no passado por Joseph Campbell.
Do mito à “Jornada do Herói”
O mito é considerado “um relato de algo fabuloso que se supõe que aconteceu num passado remoto e quase sempre impreciso” (Mora 1982, p.265). É uma narrativa fabulosa e/ou uma fábula acerca de feitos heróicos, fenómenos naturais, entre outros, podendo ser considerados o fundamento da história ou do género humano. A vulgarização do mito como alegoria torna-o num relato entre o fictício, o real e os seus paradigmas, não coincidentes, mas explicativos do paradigma da realidade.
O prevalecimento do estudo do mito como possibilidade e ilustração da história humana ajuda na compreensão e na análise da formação e da evolução do mesmo. A apuração da consciência mítica ilumina a consciência humana e, consequentemente, a consciência cultural: “Os mitos podem ser considerados como supostos culturais.” (Mora, 1982, p.266). Com isso, achamos importante enquadrar a estrutura e função do mito na consciência e na cultura, neste caso concreto na narrativa, através da sua reinterpretação, desconstrução e renovação.
O antropólogo e mitologista Joseph Campbell, no âmbito do livro O Poder do Mito, é questionado acerca do caráter especial do(s) mito(s) e por que motivo as pessoas se deveriam interessar por eles. Uma das suas abordagens refere que o problema do Homem contemporâneo é não estar familiarizado com uma “literatura do espírito”, mas sim com o hábito de assistir incessantemente notícias e acompanhar problemas da atualidade.
Após estudar e analisar diferentes mitos e histórias desenvolvidos em diferentes períodos históricos, espalhados por culturas distintas, Campbell constatou que estes compartilhavam as mesmas características, a mesma sistematização e o mesmo padrão. No seu livro The Hero with a Thousand Faces designou esse padrão por “Monom”; mais tarde o roteirista Christopher Vogler chamou-o “Hero´s Journey”, afirmando uma trama semelhante em todos os mitos: “[…] um herói que aceita o chamado para entrar num mundo desconhecido, e que nele irá enfrentar diversas provas e tarefas.” (Campbell, J. 2012). O “monomito” de Campbell é uma espécie de bússola da Jornada do Herói. A sua forma circular remete para a ciclicidade da vida e para a evolução de um herói, de uma personagem ou de uma pessoa. Os três estágios principais são a “separação”, a “iniciação” e o “retorno”; e dentro desses três estágios existem várias etapas. O primeiro estágio, a “separação” ou a “partida”, inicia-se com “o mundo comum”, onde o herói é “chamado à aventura”. Aqui ele tem de deixar o seu mundo dito normal, a sua zona de conforto, e aceitar o desafio. A “recusa do chamado” é a reação natural e humana de algum medo face ao desconhecido que, facilmente, é sobreposta pela ajuda sobrenatural, um “encontro com um mentor”, onde o herói ganha ferramentas físicas/psicológicas/metafóricas para avançar. O mentor pode ser visto como uma pessoa, um objeto ou até uma espécie de intuição. O segundo estágio prossegue com “a estrada de provas”; e é neste preciso momento que o herói faz “a travessia do primeiro limiar”, em direção a um mundo que lhe é desconhecido, num caminho sem retorno. Aqui uma série de provações e/ou superações irão dar início à verdadeira transformação do herói, através da construção e robustecimento do seu caráter e da sua autoestima. Estas dificuldades ou ajudas estão relacionadas com “testes, aliados e inimigos” que o herói encontrará pelo caminho. A ajuda do sobrenatural poderá manifestar-se com “o encontro com a deusa”. Esta entidade e/ou pessoa irá ser um forte aliado nesta jornada, pois “a mulher como tentação” será o retrato clássico e representativo que irá tentar e desafiar o herói de várias formas para desistir da sua missão. Este retrato clássico da mulher tentação remonta à mitologia das sereias, onde os heróis das grandes odisseias são verdadeiramente desafiados. Relembremos as grandes narrativas (Odisseia de Homero, Os Lusíadas de Luís Vaz de Camões) que se socorrem desta alegoria para embelezar o cenário e para acentuar a força do herói. Contudo, “a expiação com o pai” constitui a ponte de viragem, de consciência do verdadeiro propósito da sua jornada. A “apoteose” ou clímax será a chave de sucesso do herói para alcançar “a grande conquista”, materializada por um item mágico, pela imortalidade ou por um poder exemplar. O terceiro estágio progride com a “recusa do retorno”. Depois de uma jornada tão transformadora, o herói recusa-se a regressar à vida ‘anterior’, já conhecida, mas “o voo mágico” traz a oportunidade de regresso da sua jornada e de fuga a poderes alternativos. O “resgate interior” remete, novamente, para a ajuda sobrenatural, desta vez, para voltar em segurança e para fazer “a travessia do limiar do retorno”. O herói, “senhor de dois mundos”, terá agora “liberdade para viver” o poder da transformação da sua jornada como herói.
Dada a universalidade da “Jornada do Herói”, é possível estabelecer paralelismos com a jornada e vida do homem, não só no concreto, mas também no espiritual, psicológico e físico, metaforicamente falando.
Imaginemos o percurso académico de um jovem de 18 anos e integremos nos estágios e nas etapas anteriormente mencionadas. No estágio de partida/separação, o jovem é chamado para a aventura no mundo académico, o qual será um desafio e uma mudança comparativamente ao mundo do liceu. Esta mudança gera sempre algum medo e receio, sendo uma resposta primária e humana face ao desconhecido. Neste momento, surge a ajuda de um mentor, algo e/ou alguém que irá fornecer as ferramentas físicas e/ou metafóricas para enfrentar um mundo diferente, fora de casa dos pais e, talvez, fora do país. A ultrapassagem dos medos e receios colocará o jovem no mundo académico, onde irá enfrentar imensos desafios: professores, aulas, testes, avaliações, apresentações, novos colegas, procurar casa, pagar renda, contas, construção da sua identidade, etc. O jovem de apenas 18 anos será posto à prova de várias formas e feitios. De facto, há um longo caminho a percorrer, repleto de tentações, tais como, inúmeras festas académicas, faltar às aulas, não estudar, entre outras. Se o jovem resistir, conseguirá uma vantagem favorável que irá robustecer o seu propósito e, por consequência, irá fazê-lo chegar ao fim do seu percurso académico. A conclusão do respectivo percurso poder-se-á materializar com uma certificação, com uma oportunidade profissional. O retorno à casa dos pais ou a outro mundo conhecido, mas diferente, pode ser doloroso. No entanto, o jovem já passou por tantos processos de transformação que as ferramentas adquiridas irão ajudá-lo a enfrentar novos desafios e novas aventuras. Efetivamente, identificar e correlacionar as várias camadas da jornada de um jovem de 18 anos com a jornada do herói é exercício que exige alguma ginástica mental, mas fomenta com certeza o pensamento analítico, descritivo, criativo e onírico.
Se no passado, o trabalho desenvolvido por Joseph Campbell foi fundamental para uma melhor compreensão das histórias e das narrativas desenvolvidas ao longo dos tempos e em diversas culturas, hoje em dia essa herança continua bem viva e presente. São vários os heróis e as narrativas presentes em filmes, animações, contos, bandas desenhadas e jogos, consumidos diariamente por milhares de crianças, jovens e até adultos. Esses tipos de suporte possuem as mesmas características, a mesma fórmula, o mesmo padrão, a mesma sistematização do esquema circular e cíclico, inerentes à Jornada do Herói. Essas narrativas não só entretêm, como também ensinam e inspiram, oferecendo reflexões sobre a jornada humana, o crescimento pessoal e os desafios enfrentados ao longo da vida. Ao reconhecermos a presença contínua e relevância da Jornada do Herói nos meios de comunicação contemporâneos, reafirmamos o seu poder atemporal de conectar, emocionar e transformar.
A exploração dos elementos imaginativos e fantásticos dos mitos desenvolvem a sua criatividade na busca de novas formas de expressão (escrita, arte, música, etc.) e capacidades analíticas, de resolução de problemas, bem como a sua capacidade para pensar simbólica e metaforicamente. Como os mitos contêm temas e mensagens emocionais poderosas, podem também ajudar o homem a entender e processar as suas próprias emoções e experiências, e a tomar consciência sobre os diferentes processos de adaptação e transformação nas diferentes etapas das suas vidas. Este propósito revela-se ainda mais pertinente, se falarmos de um público mais jovem, cujas identidades encontram-se em constante desenvolvimento e mudança (Desautels, 2016).
Conclusão
A jornada do herói é uma jornada de metamorfose, porque o humano propõe-se ao transcendente, com as devidas provações, para integrar o corpo e o espírito. O entrecruzamento entre a narrativa mitológica e a narrativa humana tece uma narrativa entre dois mundos. Os estudos desenvolvidos por Campbell no que concerne ao mito, identificam, analisam, explicam e enquadram as narrativas numa narrativa ainda maior, que consegue educar, criar e transformar a compreensão humana sobre a condição existencial, conectando as experiências individuais com os arquétipos universais.
Além disso, proporciona ao indivíduo, não só um encontro entre gerações e tradições, mas também um incentivo à criatividade, ao pensamento crítico e onírico. Somente assim estarão reunidas as condições para que ele, nós, enquanto heróis (re)criemos e transformemos criativamente as nossas próprias narrativas, moldando o nosso destino e contribuindo para o enriquecimento cultural e o progresso da humanidade.
Em vez de meros espectadores, podemos assumir um papel mais ativo na direção em que pretendemos levar a nossa vida. Ao (re)criar e transformar as nossas próprias narrativas, estamos a exercer uma agência, estamos a tomar decisões conscientes sobre quem queremos ser e sobre como queremos viver. Ao ler, criar, e contar histórias, estamos a partilhar experiências, valores, visões fundamentais para a diversidade cultural na sociedade e para a evolução do pensamento humano.
Referências bibliográficas:
Ativa
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Webgrafia
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Joana Inês Veiga Guerra da Costa Tavares é Professora Adjunta Convidada no Departamento de Artes e Humanidades da Escola Superior de Comunicação, Administração e Turismo do Instituto Politécnico de Bragança (Portugal). Obteve o seu doutoramento em Comunicação pela Universidade de Vigo em 2017, um mestrado em Turismo, Património e Desenvolvimento pela Universidade da Maia, e uma licenciatura em Arquitetura pela Universidade Lusíada do Porto. As suas áreas de especialização incluem Ciências Sociais, Ciências da Comunicação, Educação, Humanidades, Artes e Produção de Média. Também integra o Cieb- Centro de a investigação em Educação Básica.
Joana Guerra Tavares
EsAct, Instituto Politécnico de Bragança, Portugal
joana.tavares@ipb.pt https://orcid.org/0000-0002-3092-7160
Cristiana Oliveira é doutoranda em Literatura e investigadora do CIDEHUS (Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades) na Universidade de Évora, onde também fez o seu mestrado, cuja dissertação intitula-se de “Alves Redol, um escritor em construção: o espólio e o romance Avieiros” (2023). É licenciada em Línguas, Literaturas e Culturas – Perfil Bidisciplinar Inglês e Alemão pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. As suas áreas de investigação são as Línguas e Literaturas e a Literatura Comparada. Participou como investigadora no projeto “Escritoras Portuguesas no Tempo da Ditadura Militar e do Estado Novo” (2021). Publicou o ensaio “Sinestesias Pictóricas de Alberto Pereira na Poesia e na Pintura” (2021), o prefácio “breves notas sobre o livro de Rosária Lança” (2022) e as “notas finais sobre o livro de Paulo Seara” (2023). Apresentou os livros “O Natal em Ossela” (2023) de Ferreira de Castro e “A Viagem para a Literatura ou o Destino de Ferreira de Castro” de Mário Máximo. É sócia efetiva e membro ativo do CEFC (Centro de Estudos Ferreira de Castro) e encontra-se a desenvolver uma monografia sobre Ferreira de Castro.
Cristiana Machado Oliveira
Universidade de Évora, Portugal
cristiana.oliveira@uevora.pt https://orcid.org/0000-0002-1165-0741