Entrevista I Xosé Luís Martínez Pereiro : “Não imagino a vida sem literatura”
Xosé Luís Martínez Pereiro (A Coruña, 1959) é narrador, dramaturgo e desenhador humorístico, mas também uma pessoa profundamente conectada com a sua herança cultural e linguística. Criado num ambiente onde a língua galega ecoava nas ruas e nas conversas familiares, Pereiro desde cedo desenvolveu um amor pela palavra escrita. A sua jornada literária começou a ganhar forma quando decidiu dedicar-se à filologia galega, mergulhando nas profundezas da literatura e da linguagem da sua terra natal. A sua inclinação para a escrita é complementada pelo seu talento para o desenho humorístico, uma habilidade que lhe permite explorar narrativas visuais de uma maneira única e cativante. Nesta entrevista, teremos a oportunidade não apenas de conhecer mais sobre a sua obra literária, mas também de explorar os mundos fascinantes que ele cria tanto com palavras quanto com imagens.
Quem é Xosé Luís Martínez Pereiro?
É um criador que trabalha a farinha dos dias para deixar algum frangolho em seu passo pela vida. Gosta de pensar que a gaiola em que está a existência precisa de alimento para combater a curiosidade dos pássaros futuros.
Que espaço ocupa a infância na tua vida e que recordos mais significativos tens?
A criança que fui fica longe, ignoro onde foi parar o meu diploma escolar de segundo em perseverança, a aplicação no estudo era outro cantar e os biosbardos ocupavam uma parte importante do meu cérebro. Estava convencido de que a minha mãe inventara o engrudo e, ainda preocupado pela venialidade das minhas faltas, descobria que faltar ao colégio era um pecado próximo da morte, mas muito atraente para os que andávamos de calções. Algum pouso deve ficar na minha literatura das leituras compulsivas daqueles romances com pistoleiros de sete pés de alto, com cicatriz na face e que disparavam mais rápido que o insulto. No cinema Hércules –hoje é uma loja de livros velhos, discos e demais parafernália usada– os filmes tolerados eram todas de vaqueiros ou romanos. Às vezes aparecia um filme de Sinbad que os rapaces víamos uma e outra vez, mais que nada porque à actriz se lhe adivinhava um peito quando se agachava.
Quando e como começou essa criança/adolescente a descobrir as artes, a literatura, a música…?
Se não recordo mal, o meu primeiro contacto com a arte desembocou num castigo exemplar, a minha curiosidade pelas peculiaridades anatómicas femininas levou-me a arrincar as páginas de algum livro com quadros de Modigliani que reproduziam mulheres nuas. As revistas de arte do meu pai também seriam esquilmadas e, apesar de compreender e fomentar o meu interesse genuíno por incrementar os conhecimentos, o meu progenitor castigara-me sem televisão a branco e preto e, por isso da lei compensatória, rachara vários dos meus TBO de quadrinhos e com façanhas belicosas.
Como já disse, o meu interesse pela literatura arrancou com os romances do oeste, autores como Silver Kane ou Clark Carrados enchiam meu imaginário com pistoleiros, indianos, cabeças de um gado que não tinha tempo de dar leite por causa da tendência à desbandada e algum assalto bancário. Hoje sei que sob os nomes americanizados se escondiam magníficos escritores, Francisco González Ledesma era um deles. Ao mundo da colchea cheguei por imitação fraternal, elegi o clarinete e, trás uma breve incursão como gaiteiro e depois de passar por um grupo de música folk, desembarquei por um tempo na esfera do jazz. A literatura foi ganhando terreno e as palavras venceram as notas. Agora, quando quero desligar da criação literária, mergulho no humor gráfico.
São compartimentos estancos essas artes para ti? Ou comunicam-se na tua experiência?
O indivíduo é um todo, e as diversas experiências, ainda que não queiramos, vão deixando um pouso em nós que não podemos ignorar, quem se subtrai do passado? O conhecimento musical fornece uma certa autenticidade à criação poética (ritmo, intensidade…). O esforço por concentrarmos a mensagem em poucas palavras próprio das anedotas é um exercício magnífico quando queremos fugir do adjectivo inútil na prosa. Portanto, o humor gráfico ajuda muito quando queres trabalhar a linguagem do humor literário, mas respeitando as notáveis diferenças. O mundo das colagens, do papel recortado, reflecte também a minha particular maneira de ver a realidade exclusiva, essa que me circunda, valendo-me de imagens. Além do tacto, palavra, música e imagem não deixam de serem as principais ferramentas da comunicação. Eu, como André Gide, não quero ser filho da minha época, quero sobrevivê-la. O humor faz parte da minha maneira de enfrentar-me a essa realidade que se disfarça de única, com uma excepção, reservo unicamente os pensamentos tristes e reflexivos para os ferrados da poesia, reino do sentimento nu e de certa verdade.
Como é a tua maneira de criar literatura?
Varia muito, no âmbito da narrativa umas vezes parto de uma leitura que me marca e da qual tiro uma frase inspiradora que, analisada sob um prisma desacostumado, alimentará toda a narração. Tenho uns quantos cadernos de apontamentos que me servem de inestimável ajuda e assim fugir da mente em branco. Hoje está todo dito e pensado, só falta procurar um novo enfoque, uma nova maneira de dizer as mesmas coisas. O ano passado foi muito curioso e enriquecedor, forcei-me a criar relatos breves em excesso, tanto como para limitar-me, bem a 59 ou bem a 95 palavras, nem uma mais nem uma menos. É uma evidência que eu nasci na primeira das cifras do século mais feminino da nossa era (do ponto de vista da numeração romana) e Uxía, a minha única criação nascida linda atendendo a etimologia, na segunda. Além dos laços familiares une-nos uma existência capicua. Neste momento o resultado pode que tome a forma de livro em papel, como é lógico, está no obrigatório repouso, entretanto já verei o que faço. No teatro gosto de enfrentar as personagens em diálogos corrosivos e pô-las em situações aparentemente absurdas. Para a poesia reservo a minha faceta mais surreal.
Que impacto ou influência tem a literatura, e as artes em geral, na vida e, em concreto, na tua própria?
Não imagino uma vida sem literatura. A beleza de uma história bem contada ou um poema que lhe faça pensar são um alimento indispensável para quem ama a imaginação e as palavras. Em princípio a realidade é um desastre que respira monotonia e só melhora com uma aventura, com um diálogo inspirado ou com o deleite ante uma imagem que combata a fealdade da existência. O homem que não quer uma existência prosaica, uma vida escrava dos horários, tende a refugiar-se na arte e na literatura, bem naquelas saídas de um mesmo ou nas imaginadas por outros.
As minhas obras dramáticas e narrativas são humorísticas, distorcidas mas com um certo grau de corrosão, e tentam ser actuais. Concordo com a opinião do Nick Hornby quando diz que a literatura séria reflete um mundo que morreu há 40 anos.
O homem que não quer uma existência prosaica,
uma vida escrava dos horários, tende
a refugiar-se na arte e na literatura
O humor é algo que destaca muito também no teu trabalho e na tua personalidade. Que é para ti, como chegou à tua vida e qual é o teu vínculo com o mundo do humor, mesmo a nível internacional?
A lágrima só é linda se proceder do prazer. Coita e coito são vocábulos irmãos e, obviando tendências masoquistas que acham no sofrimento a sua razão de ser, a vogal que os separa tem relevo bastante como para se decantar por uma delas, tenhamos em conta que o humor é uma forma de relacionar-se com o que nos rodeia. O que mais une um casal é o sorriso. O mundo do humor traspassa qualquer limite, tem cancelas o pensamento corrosivo? Na geometria dos acontecimentos cabem diversos pontos de vista, o rosário de tragédias que acompanha uma vida –escrita ou não– às vezes ganha aos recursos próprios de uma comédia sem sacramentos, é de agradecer que se repare nos ângulos divertidos que sempre há em todo, ainda sendo politicamente incorrectos e mesmo branco da incompreensão. Tanto a tragédia como a comédia envolvem qualquer experiência do homem, da mulher e demais animais que se guiam pela razão. Trata-se de um mecanismo de defesa? Talvez. Devemos perguntar-nos se a realidade é todo-poderosa ou pode mais a imaginação. Agora que estamos em momentos belicosos e de extermínio quiçá não seja nenhum consolo, sobretudo para os que rodeiam as vítimas, dar-se conta de que vão passar à história da desavença humana pela porta grande. Acaso não dizia Stalin que a morte de um homem era uma tragédia, mas a de um milhão só importava para a estatística? Nós os humoristas encontramo-nos nesse ponto, em denunciar a escuridão que se agacha sob a falsa luz das palavras ou imagens que envolvem uma vida ou duas, depende da longevidade de cada um e da predisposição. Vem-me à cabeça um magnífico exemplo: um dos melhores romances da primeira metade do século XX, O bom soldado Svejk, do tcheco Jaroslav Hasek, aborda algo tão trágico como a primeira guerra mundial de um modo maravilhoso e divertido. Por vezes os vínculos aparecem sem procurá-los, uma gente fala com outra, uma ideação, uma conduta, ressuscitam e trás comprovar –com matizes– que a história é algo cíclico, que transcorridos os anos recupera actualidade e vigência sem necessidade de disfarçar o passado com presentes, chega a conclusão de que o tempo é uma invenção, parece transcorrer mas a léria não convence. Sirva como prova irrefutável esta oportuna colagem que, com o amparo do jornal Deia, apareceu numa revista satírica basca vai para duas décadas e, capricho de um comportamento itinerante e original, foi naturalizar-se em 2006 na romena The Humour´s Museum of Calarasi Collection. E é que nas artes visuais há que se adentrar, não chega com a contemplação. Mudam os tempos e as vontades? Hitler e seu testículo ressuscitam numa metamorfose que parecia impossível, quanto tardará Netanyahu em deixar-se bigode? Aparecerão intelectuais de renome defendendo que as línguas germânicas e a hebreia são parentas? Vale, as grafias são diferentes, mas também não tanto! Há muitas personagens que opinam que a vida atual está valorada em excesso, há poucas semanas que rematei um conjunto de relatos que, se a coisa não se malva, conformarão um livro intitulado O suicídio é uma questão de hábito. Que saibas que à vez que escrevo e mudando de arte, está a soar em alguma parte do cérebro a desgarrada voz de Ana Moura interpretando o Desfado, há algum exemplo melhor que misture alegria e tristeza?
Achas que poderiam influir (se o podem fazer) as artes na realidade, e nesse caso como o fariam?
A capacidade das artes de influenciarem a realidade é, no mínimo, discutível, sobretudo se falamos de artes visuais. Há uns dias estive a jantar com o meu irmão maior, o Carlos Paulo e levei-lhes como presente um livrinho vivo, quase não do ano passado, que recolhe a obra lancinante de Otto Dix. Passaram cem anos sobre as imagens de um século XX mas também XY, penso… mas não nos desviemos, insisto no já dito, alguém ousaria dizer que não estão de actualidade? Agora bem, e abro outra interrogante: conseguiram parar o conflito ou simplesmente valeram como amostra de disconformidade com uma guerra que, como todas, ao que parece e sem contar os milhões de mortos, teve como primeira vítima a verdade? Desculpe que abuse do pensamento emprestado, mas acho que não estaria demais revisitar as reflexões do prusiano Carl von Clausewitz com relativa assiduidade. Assim poderíamos presumir ante as amizades com a nossa erudição e dom de línguas ante um massacre ou qualquer outro conflito, com certeza incluo também os afectivos. Retomando o fio, o mundo imenso da imagem conta com uma vantagem se o defrontamos à palavra escrita, explico-me, o primeiro conta com o privilégio do instante para manifestar a sua mensagem, o verbo impresso não obstante precisa de maior pausa, talvez a mente funciona mais com palavras, toda a linguagem é tradução. Estou a cismar numa evidência, as letras que nutrem a comunicação com traços, sem pele, também são imagens que necessitam serem interpretadas.
Mais uma coisa, repara na facilidade que têm as imagens para traspassarem fronteiras, ademais podem ter várias vidas úteis. Vou exemplificá-lo com o que tenho mais a mão, a minha própria experiência: a colagem avulsa apareceu, em branco e preto, no interior da “antologia de sedes clandestinas” do livro que intitulei As irmás bastardas da ciencia (Laiovento, 1999); era uma lástima que o cromatismo da colagem original ficasse escurecido, submetido à lei das trevas e do seu contraste visual, sem se conhecerem; nestas, ou melhor naquelas, tomei a decisão de divulgá-la e tive ocasião de ter, em seguida, uma narração inspirada na Matéria de Bretanha, em concreto no corajoso cavaleiro Palamades, o que brigou com a Besta ladrador, não vou revelar o desfecho para incentivar o interesse naqueles que não conheçam a maravilhosa história. O que sim direi é onde acabou a imagem o seu périplo, na Kunsthalle Dominikanerkirche de Osnabrück.
Por contraposição à imagem, susceptível de ser modificada com a ajuda de um programa informático, a palavra é imutável uma vez dita ou passada pelo prelo. Virão a conto as palavras do Jorge Luis Borges assinalando que o original não é fiel à tradução? De todos modos entrar-mos-íamos num debate diferente, difícil de abordar porque não se esgotaria, o da originalidade. Alguém dirá que também os vocábulos vivem várias vidas, ainda que seja de outra maneira. Verdadeiro. O acaso pode modificar um título original; mais uma vez acudirei à minha experiência com as gralhas. Eu nasci como poeta antes do mundial de futebol do 82, o semanário A Nosa Terra, em concreto o seu número 215, dedicara meia página do espaço reservado à cultura a uma selecção de poemas que vinham de premiar nas construções de madeira da célebre “A Ponderosa”, lugar e quase topónimo onde germinou a futura Universidade da Corunha… Ao que ia, o caso é que o extracto apareceu com um título diferente ao original, mas gostei dele, era menos usual e ficou para a eternidade das letras modestas e super-realistas. Sempre serei o autor de Um comprido cigarro da estepe e não da “espera”.
Ainda que pareça uma boutade, a maior parte das vezes o humor (pretensamente inteligente e preto/negro, digamos obscuro) e o pesimismo (auxiliado pela razão e as lições que ensina uma realidade cada vez com menos cores), vão de mãos dadas prévia amputação da extremidade menos dominante.
Permite-me uma brincadeira intelectual, cúmplice, das que misturam ficção e realidade: sendo uma carapuchinha vermelha, que leva pêras e maçãs no queipo diante do Lobo de Antunes, e tendo ao meu favor a vantagem do apelido da mãe, discrepo de que “com a idade um se vá parecendo a uma árvore antiga”, eu surgi de uma criatura híbrida já ao nascer e é que, ao natural e conhecido na contorna como Pereiro pequeno, haja ou não til circunflexo sobre o e, os peros teremos sempre um aquele adversativo.
Nós os humoristas encontramo-nos nesse ponto:
denunciar a escuridão que se agacha sob a falsa luz das palavras ou imagens
Como influi a(s) realidade(s) no teu trabalho criativo?
A maioria dos criadores temos umas vidas que transcorrem nas margens, vidas que não se detêm se decidimos usarmos a memória viva dos mortos, e é que devemos ser conscientes de que não só se aprende a viver em intervalos, sejamestes familiares, de amizade, laborais, de saúde ou de um casal.
Como ente dotado de um olhar corrosivo, quiçais insurreto e sendo consciente de que sou um seltsamer vogel, concordo com a ideia expressada por Mírian Freitas neste mesmo espaço da Quiasmo, com efeito, “a memória é uma oficina de ossos”, um pouso do quehá que botar mão à hora de gerar outras realidades. Acho que para os mortos o suicídio consiste em voltar à vida, morrem por deixar de sentirem-se como uma lapa no peirau da memória e, com o auxílio dessa imaginação que é o último que se perde, pois encomenda-se à omnipotência, abandonar uma (in)existência em excesso calma e sedentária. Na guerra morre-se só uma vez, não obstante na vida morre-se muitas vezes, escrevia Anaïs Nin nalguma parte do seu monumental Diário. E desde o passado sempre vivo retomaremos esta actualidade do instantâneo, cada vez mais afeita à sombra consentida de um futuro incerto.
A minha criação mais importante, desde dezembro de 1995 e na parte que me toca, é minha filha Uxía, dito sem ânimo de propriedade. Nossas realidades sofreram uma mudança significativa, um adulto do ano 59 e uma rapariga nascida em 95, por tanto uma existência capicua, unida pelas leis da cabala. Contava-lhe histórias adaptadas ao tempo que vivíamos para estimular sua criatividade de criatura, ela olhava-me fascinada e aprendia que até os objectos têm ponto de vista, não unicamente diástole.
Sabes as Meninas, ademais de um quadro de corte com maiúscula, são esponjas que imitam o que vem e, segundo a pedagogia de “cortelho”, precisam mais do aplauso que do castigo. Monstros esfomeados que comem spaguetti, unicórnios de sete patas, alguma nuvem que mijava sidra, criaturas feitas com “cachos” de anatomias quase humanas ou animais, “olháparos” femininos com um único olhar mas feliz e, sobre todos os seres que a força incontrolável da imaginação converte em realidade, não podia faltar nossa preferida: a sereia. Tanto é assim que elaborei um ex libris para identificar seus livros com propriedade. Uxía – a nascida linda – via-me ante o computador e atirava-se na alfombra remedando minha actividade escrita ou pintada. Quando debuxava um cartum pedia-me papel para pintar; punha-se a fazer alguma colagem, apanhava as tesouras pequeninas com o gume para manechos, pegamento, revistas e…
Apesar de que o primeiro destinatário de uma obra é o próprio autor, precisava de corresponder a atenção de uma nena de três anos, como?Pois inventando para ela A muller mariña (A Nosa Terra, 2003), uma narração documentada na realidade da leitura e da mitologia tanto do mar como da terra. A sereia de As Marinhas, para a minha surpresa, contou com os preciosos desenhos da ilustradora e ceramista Ana Pillado. Permite-me um pouco de presunção, devo salientar que esta narração concebida para o deleite exclusivo e futuro da filha, foi seleccionada e recomendada pelo Seminario Permanente de Educación para a Igualdade e passou a fazer parte da “Guía de Literatura Infantil e Xuvenil Non Discriminatoria” (Xunta de Galicia, 2004). Fazer também referência à capa que Uxía fez para Novas tendencias da vida mansa (Laiovento, 2007), mas que também a tua filha Alba Torres Ferreiro elaborou a magnífica capa do Esplendor Arcano (Xalundes, Grupo Surrealista Galego, 2012, apenas por um dia). Sim, a poesia é verdade e a narração, mentira (com a fausta permissão de Goethe).
O humor faz parte da minha maneira
de enfrentar esta realidade
que se disfarça de única
Como vês tu o estado das artes (e da literatura e do humor, mais em concreto) nestes tempos tão convulsos do planeta? Que autoras/es ou criatividades te chamam mais a atenção agora mesmo?
Não há dúvida de que estamos a viver tempos convulsos em todas as ordens, artes e literatura incluídas. O humor se calhar envolve todas, falando em sentido amplo e de defesa. Mas cuidado, há muito impostor, recordo uma exposição no Palácio Serralves há umas décadas: Begoña, minha ex-mulher presta a parir, quase fica no sítio vítima de um ataque de riso e não memorizamos o nome do “artista”, era americano do norte e, a verdade, sentimos-nos algo enganados. Espalhadas pelo chão havia garrafas vazias colocadas a eito, como vertendo diversos líquidos de cores, uma arte muito profunda para os nossos modestos perceberes de espectadores, mas o andar de arriba também tinha o seu pois estava mergulhado no escuro, havia aparelhos de televisão por todos os recantos, em sintonia com o espaço das moscas e um som do além acompanhava a visita sem guia. Ainda hoje ignoro as pretensões do escultor? pintor? trabalhador do vidro? operário de antena em desemprego? palhaço da incomunicação? Escolho esta última opção, o humor também é uma arte importante, passamos um momento divertido e digno do recordo.
Tenho a sorte ou condenação de me mover em vários mundos criativos, nestes últimos tempos e desde a pandemia da COVID 19 prevalece o âmbito da literatura, o que leva a fazer amizades que partilham ou não inquietações expressivas nos diferentes formatos da criatividade com imagens, palavras ou ambas as duas coisas. Nisso sou um privilegiado, não obstante e como amostra de que o humor gráfico dá uma visão diferente do que nos rodeia, talvez mais aceda e instantânea, eis o cartum que lhe enviei à grande Ana von Rebeur, presidenta argentina da FECO. Convidara os colegas do mundo do humor sem palavras para participarmos na iniciativa Gender Issues, exposição que percorreu boa parte dessa geografia que tão bem retrata o escritor Amor Towles no seu último romance com autoestrada.
Já vou numa idade que permite dar conselhos, vou-me permitir uma brincadeira rimada: “só a leitura / o estilo depura”. Seria a minha recomendação para quem pretenda desfrutar a fundo com a escrita, ainda que se dão ao mesmo tempo as aprendizagens quando crianças, antes de escrever está o ler, saber o que outros disseram dentro das possibilidades de cada quem. Poderia ser um convencido e falar dos clássicos gregos e latinos, também algum do oriente. Muitos livros da minha biblioteca chegaram às minhas mãos graças à morte, dona Carme, a viúva de dom Henrique, vizinho pintor –conhecedora de que os desfrutaria como ouro em lenço– deixou-me escolher entre as jóias literárias das que se queria desfazer pois a ela não lhe serviam mais de que como adorno. Não só devorei os clássicos que todo mundo considera imprescindíveis, mas acrescentei o melhor da literatura em língua portuguesa, francesa ou russa do XIX. Uma delícia, por desgraça muita escrita nasceu de um conflito armado, este século já existiu anteriormente com pequenas modificações, só há que buscar nos interstícios da memória e da história.
No humor gráfico vais permitir-me que tire para a casa galega onde participei de maneira activa, destacaria o labor sem pago do imenso e comprometido Xaquín Marín e o seu Museu do Humor na localidade de Fene. Por outro lado está o Siro ou Pepe Carreiro, o dos Bolechas, e também impulsor de publicações como Can sen Dono, O Farelo e, por suposto, XO! A voz que para as bestas, uma revista de humor político que foi todo um acontecimento na Galiza. E que dizer de Xosé Lois, o criador de “O Carrabouxo”? Uma personagem que pode dizer-se que tem existência real e uma estátua na sua terra do ouro (passa outro tanto com Mafalda, a criatura de Quino que já nos pertence a todos um pouco) e vou atrever-me a recomendar o maravilhoso trabalho de uma colega colombiana a quem aprecio especialmente, Adriana Mosquera Soto, descendente de galegos que arrasa no mundo global com a personagem de Magola, herdeira actualizada da criatura argentina mas com uma visão de mulher. Seguro que se me esquece alguém de importância. Entre os galegos novos, citaria ao Leandro e ao Kiko da Silva (responsável pela desaparecida revista Retranca).
Neste apartado do humor gráfico merece especial menção Osvaldo Macedo de Sousa, o director da Humorgrafe Editora, responsável entre outros do Salão Luso-Galaico de Caricatura (Vila Real e Ourense) e de todas quantas iniciativas se montam arredor da exemplar Bienal de humor raiano de Idanha-a-nova com fronteiras e vizinhos.
Que autoras/es ou criatividades te chamam mais atenção agora mesmo?
Sobre os escritores que me dão nas vistas dizer que prefiro aqueles que têm um mundo próprio, sigo com verdadeiro interesse o percorrido no romance de Teresa Moure há uns anos tive a sorte de desenhar-lhe a portada de Cínicas, uma das suas peças dramáticas mais interessantes.
Não quero dar nomes da literatura galega nem desvelar o meu subjectivo critério de valoração, feriria susceptibilidades, não obstante, porque é de justiça, tenho que ressaltar um bom amigo que por razões que não vêm ao caso, abandonou a literatura, refiro-me a Xurxo Sierra Veloso, um outsider das letras corrosivas que desde Salamanca semeava o seu humor com um magnífico ofício. Autores dos que gosto e que estão sempre de actualidade? Citarei uns quantos dos muitos que sabem contar: Valter Hugo Mãe, Tibor Fischer, Wilhelm Genazino, Slawomir Mrozeck, Moacyr Scliar, Eduardo Galeano, Amélie Nothomb, Jô Soares, Tony Bellotto, Josephine Tey (verdadeira senhora do crime bem escrito), Lu Sin, Millôr Fernandes, Claudia Pinheiro, Bryce Echenique, Banville e o nome que emprega para o romance escuro com o seu doutor Quirke, Vila-Matas, Bernardo Atxaga, Arto Paasilinna, Francisco José Viegas, Tom Sharpe, Javier Tomeo, David Lodge, Nick Hornby, J. Rodolfo Wilcock, Roberto Ampuero, Martín Garzo, Pierre Lemaitre, os catalães Jaume Cabré, Quim Monzó e Albert Sánchez Piñol, Alberto Ongaro, Lázaro Covadlo, Ramiro Pinilla, Clarice Lispector, Raduan Nassar, Pepetela, Rapaz Buarque, Mia Couto, Gonçalo M. Tavares, Luis Landero, Zarraluki, Mircea Cartarescu e um cumprido etcétera.