A última música I Eltânia André
O desatino de Abraão assombra-me tanto quanto o assassinato de Laio.
É o nosso destino, afinal? Feito Telêmaco, contestando todas as previsões e prenúncios,
procuro por novas notícias e acontecimentos. Caminho pelas avenidas, vielas,
Vim porque aqui nasceu e viveu o meu pai.
Tenho novamente a sensação de que estou em cima da hora. Cheguei tarde para o encontro inadiável e intransferível, esse é o pressentimento que me toma. Depois de anos sem entrar em seu ateliê, percebo, num piscar de olhos, que os relógios proliferaram pelas paredes, entulhando armários, rastejando pelo chão, albergados no sótão. Embora a organização e a limpeza contrastem com o excesso de objetos, o cenário me deixou mais angustiado. Cogitei a possibilidade de o velho ter se tornado um acumulador ou um excêntrico mágico urbano (o que combinaria mais com o seu bom humor e o jeito maroto). Em cima da mesa principal, a conhecida vitrola ganhava destaque, no topo da pilha de LP’s o álbum de Beto Guedes de 1977, ano do meu nascimento. Não por acaso, temos o mesmo nome.
O pai foi relojoeiro a vida toda, consertou, comprou, vendeu, colecionou miudezas e raridades. Um sócio de Chronos. Sim, ele foi se tornando, ao longo de sua trajetória, o guardião das horas. Irritava-me a sua previsibilidade, a sua mania de contar as mesmas histórias. Dificilmente alterava a sua rotina. Aposentou-se há anos, mas nunca quis encerrar o seu pequeno negócio, mesmo não tendo mais o número de clientes de antigamente. Sempre ia para o trabalho a pé, dizia que preferia seguir caminhando devagar pelas ruas do bairro para sentir o vento e apreciar o entorno. Por onde passava, era saudado pelos moradores do Prado.
E não se abatia nem se curvava às minhas queixas sobre a sua obsessão em ser pontual como o Big Ben. Idiossincrático, lançava chistes decorados ou desviava o papo para assuntos mais amenos. Ele tem (ou tinha?) uma forma descontraída de lidar com as adversidades. Hoje, porém, me pegou de surpresa com a dupla ausência: dele e do coro dos tique-taques. Qual teria sido a sua intenção? Negociar com o mais novo rei dos titãs? O pai não faria isso se não fosse imprescindível. Há de ter confiado na silenciosa e imutável verdade da ampulheta, pois contrariando o seu eterno ofício, o ilusionista imobilizou os ponteiros de todos os relógios. Um a um, pacientemente. Sei lá quanto isso lhe custou. Soube que no último dia de trabalho, ele ouviu música durante toda a manhã, só mais tarde entregou os pontos e ligou para a ambulância. Quando aqui cheguei, o homem da loja de ervas me abordou, Você é o Beto, filho do seu Antônio Relojoeiro? Ele é pedra 90. Sabe o que me falou anteontem? Ele me disse assim: Acredito piamente que foram os egípcios que inventaram o relógio do sol, mas o que isso importa agora? A vizinhança o tinha em alta conta.
O que mais me impressionou foi o fato de ter deixado a agulha suspensa sobre o início da última música, como se me pedisse mais uma vez: Ouça novamente, é uma composição alegre, que fala da nossa gente. Pense nas montanhas mineiras, nas cachoeiras, em arroz com pequi e carne de sol, na sonoridade da língua, pense nos sábados que passávamos juntos no Mercado Central, nos campeonatos no Mineirão, nas férias na casa da vó na Zona da Mata Mineira, pense que nem todo mundo conhece abiu, nosso fruto predileto (…)
2 minutos e trinta e cinco segundos, é o tempo exato da última música. Aquela que o meu pai não ouviu.
Não sei o que fazer com esse espólio, inventário e marcas de uma vida. O despertador azul-claro, o primeiro da coleção pessoal do pai, considerado por nós quase como um membro da família, destacou-se aos meus olhos e parecia me inquirir sobre qualquer coisa. Quando eu era criança, era ele que nos acordava. Era tão estridente que dizíamos ser impossível permanecer por qualquer segundo no melhor sonho ou no pior pesadelo. A voz do pai me vem à memória: Beto, meu filho, quando ele ordenar, se levante e aprume que está na hora de curtir o dia. Quando passei no concurso do Banco Central e me mudei para outro estado, vinha em quase todos os feriados, depois os compromissos foram me atropelando e eu adiando o retorno à casa do pai. Uma vez, cheguei a convidá-lo para passar uma temporada comigo, mas ele me respondeu: Meu lugar é aqui. Segundo o parecer médico, não haverá revanche nem reparação do tempo perdido.
Dentro de 2 minutos e trinta e cinco segundos, o que poderá nos acontecer?
O que construímos juntos? O que pode construir um filho com seu pai? Não, não busco a resposta na genética, na hereditariedade ou na cultura, e sim numa construção a quatro mãos. Alguma coisa, simples que seja: um jantar, um remendo numa rede de pescaria, um pião talhado pelo mesmo canivete, um desenho, uma parede de cimento e tijolos, uma aeronave ou um barco de papel, uma pequena esfera, um poema ou o gesto ensaiado, uma carretinha de rolimã. Porém, nada me consola ou me vem à memória.
2 minutos e trinta e cinco segundos, é o tempo preciso da última música. Aquela que o meu pai ainda não ouviu. Ainda não ouviu?
Não sei explicar o motivo, aliás não estou em condições de dar qualquer tipo de explicação. Sou todo expectativa e espectador. O certo é que caminhei até o despertador azul-claro, dei corda, acertei as horas com o meu celular, programei para soar dali a dois minutos e trinta e cinco segundos. Enquanto aguardava a ordem para o despertar, a ansiedade foi crescendo. Andava de um lado para o outro dentro do pouco espaço. Sabia que iria nos acontecer algo importante. Tinha esperança. Quando o barulho rompeu o silêncio, de imediato, eu soube o que fazer. É isto: ele está me esperando. Ele me espera.
Coloquei a vitrolinha com o vinil dentro de uma sacola que encontrei pendurada atrás da porta. Tive o cuidado de não modificar a posição da agulha em pausa, mantive tudo do jeito que ele havia deixado, não alterei nada. Peguei um táxi em direção ao hospital. Desnecessário contar aqui todo o transtorno que causei para entrar com o equipamento na UTI, mas o que importa é que a equipe acabou encontrando uma solução.
Assim que abaixei a agulha, tive vontade de sacudir o pai e lhe dizer: Acorda! Acorda e repara no maravilhoso som do bandolim! Acorda e ouça como o clarinete se destaca. A “Belo Horizonte” preencheu o espaço com os violões, a flauta, a percussão. Não queria que os instrumentos se calassem. Enlacei a minha mão na mão do pai, quis dar-lhe um beijo no rosto fatigado e inerte, mas como não tínhamos esse hábito, tive vergonha e o constrangimento venceu o páreo. De qualquer forma, eu era, novamente, o menino do meu pai.
Podem dizer que foi um reflexo do organismo em coma ou uma alucinação da minha parte, mas quando a música estava por um fio para terminar, apesar daquele arsenal de aparelhos que o monitorava, a boca do pai se abriu num sorriso solar. Restamos rindo feito as crianças que fomos um dia.
Estava cumprido o último acordo com as Parcas, enquanto o derradeiro acorde calou-se na vitrola.
♦
Eltânia André nasceu em Cataguases (Minas Gerais/Brasil), atualmente mora em Portugal. Formada em Administração de empresas e Psicologia, com especialização em Psicopatologia e Saúde Pública. Autora de Manhãs adiadas (contos, Dobra Editorial, SP, 2012. Finalista do prêmio Portugal Telecom), Para fugir dos vivos (romance, Editora Patuá, SP, 2015), Diolindas (romance, Editora Penalux, SP, 2016, escrito em parceria com Ronaldo Cagiano), Duelos (contos, Editora Patuá, SP, 2018), Terra Dividida (romance, Editora Laranja original, SP, 2020), Corpos Luminosos (contos, Editora Urutau, 2022) e Diário dos mundos (romance, Editora Laranja Original, SP, 2022, escrito em parceria com Letícia Soares).