Dez Ilustrações para “A Queda da Casa de Usher” I Robert Glück
O convidado monta a sua égua castanha de costas para nós, permitindo-nos contemplar através dos seus olhos as janelas cegas, os juncos e o avançar do crepúsculo e da estação.
Campos arruinados, árvores brancas despedaçadas e a terra rastejando em movimentos amplos. O convidado usa um chapéu alto de castor e um casaco cinzento. As moscas dos cavalos tentam aninhar-se nos vãos atrás das suas orelhas. As suas calças estão enfiadas em botas Hessiana.
Sentir-me-ia tão assustado, tão fraco, se a casa e as árvores fossem diferentes? Um acidente molecular, replica-se dentro de mim como o estrondo dos cascos no pátio. A causa da sua agitação é demasiado superficial para ser percebida.
Que foi – pausei a pensar – que tanto me perturbou na contemplação da Casa de Usher?
O último sopro de vida de Roderick Usher prolonga-se arquitetonicamente. O convidado tem a infância e Roderick tem a morte.
Atrás da porta, Roderick encolhe-se enquanto os seus sentidos convulsionam. A experiência invade-lhe a carne. A SENSAÇÃO atravessa o ACONTECIMENTO como uma bola de demolição através de teias de aranha:
Pente a deslizar pelo cabelo do convidado, estalo do fecho da mala de viagem, clique da fechadura da porta, rangido da sela, cascos batendo no chão, água deslizando com o bater de um cisne, piar de codornizes assustadas pelo cavalo, coração de um esquilo batendo música desajeitada no céu, tilintar morno de moedas num tábua de madeira, zumbido do estômago amassando carne. A carne morna a liquefazer-se, as covas e a virilha do convidado, fezes a penetrar no tubo macio. Roderick ouve o refrão e saboreia o hálito que o canta.
Quando ergui novamente os olhos para a casa, a partir da sua imagem na piscina, surgiu na minha mente uma estranha fantasia…
Ratos castanhos brincam no corredor mas Roderick não os vê. Ele está a dar as boas-vindas ao convidado no seu estúdio. O estofamento e as cortinas estão remendados com peles castanhas pequenas. Cadáveres de moscas amontoam-se nos peitoris e flutuam à superfície.
A violência modesta do baque do coração do convidado esmaga Roderick, ele é vidro e tecido, mas não nota a infestação nas suas roupas mofadas. O som seco das fezes secas de rato debaixo dos nossos pés. O que pode a sala fazer e o próprio Roderick? Tiques faciais, gaguejo, dores erráticas. “A mente apodrece.” Ervas-dos-chocalhos soltas nas suas têmporas. Excitação odiosa – não há orgasmos suficientes no mundo para a expulsar.
Roderick aprecia a solidez do convidado – evitador de sentidos, estável como uma pirâmide. No ápice, o seu olho abre-se para um mundo moribundo: a Distância Média. O bom senso é a morte a que toda a matéria acorda a cada momento.
Roderick não altera a sua postura de boas-vindas, palmas abertas. O reconhecimento é uma espécie de toque. O convidado oferece-lhe vinte minutos de conversa. Roderick olha em volta como se estivesse cercado por uma festa barulhenta. Tenta os sinais do convidado: choque, diversão, choque, diversão. É um alívio, mas ele perde o fio à meada.
Usher levantou-se de um sofá onde estivera estendido…
Roderick ainda empola o cabelo e usa os sapatos rasos, as meias de relógio, as calças justas de culotte e o casaco de cauda simples, na moda há vinte anos. O convidado é o espelho da moda, com calças de pique brancas e sapatos pretos com salto. Os motivos gregos no seu colete amarelo exibem o novo interesse na antiguidade. Madeline usa os lençóis encrustados da sua cama.
As mãos sujas de Deus animam Roderick e Madeline. A forma que cada marioneta assume gera uma ansiedade questionadora na outra. Roderick esconde o seu pénis com o seu escroto para se assemelhar ao seu gémeo. Um piolho pisa-lhe o mamilo, ele ejacula.
Quando o convidado chega, Madeline só pode recuar em acolhimento, um frio fragrante já banido do presente. Ela ouve Roderick falar sobre a sua morte para que a catalepsia não seja vista enquanto viva. Ele faz fantasmas de todos; contagioso, ele é o criador de fantasmas.
Roderick: O que julgas ser os meus livros são apenas os resíduos de mim mesmo. Usurário, Mercador de Carne, Falsificador, Ladrão de Joias, Viciado, Assassino, Chantagista, Prostituta, Contrabandista, Traficante de Escravos, Assassino em Massa. Livros fantasmas. Coloque o indizível na prateleira da biblioteca – impropriedade além da expressão – forçando o olho a ler que a cada segundo é criado a partir do crime.
Uma ideia excitada e altamente perturbada lançou um brilho sulfuroso sobre tudo.
As sombras abatidas de homens e caixão. Roderick sepulta a parte de si mesmo dedicada ao presente. A excitação indesejada é também auto-repulsa. O convidado pressiona um lenço contra o nariz –
O convidado: O enterro de um inocente é um pôr do sol brilhante. Roderick olha para cima para ver se estou a troçar dele.
Naquela noite, a Memória de Madeline queixa-se que a camisa de noite de Roderick a mantém afastada. Roderick lamenta que os seus mamilos sejam demasiado sensíveis, apenas algodão em decomposição…
A Memória de Madeline: Que Roderick fique quieto, fingindo uma ausência de ser. Que ele chame ao seu corpo o seu cadáver. Ao pressionar a única parte marmórea – rígida como um cadáver – forço gemidos contra a sua vontade para que a sensação seja minha.
Sapatos sugam lama de urina
No chão da cripta.
As moscas tomam banhos de poeira no tapete.
A guitarra dissonante é POESIA.
As suas cordas partem em NULO.
Parcialmente afastámos a tampa ainda por desapertar do caixão e observámos o rosto do ocupante.
Roderick está a esvaziar-se, nevoeiro azul e dispersão. Uma rapsódia alargada deixa escapar expectativa e lodo.
Madeline fia-se no seu caixão, mas a Distância Média detém-o. Pode ela salvá-lo? Com o recurso do último suspiro. Ele precisa de ser salvo? Exatamente o seu amor divide-o como uma serra de ripas. Em dois: Roderick e Madeline.
Ele recua no seu último suspiro para uma mansão maior (mais fodida): desgosto doloroso, perda da capacidade de amar, baixa autoestima. Cabelo um capacete trémulo, dedos brilhantes de sujidade. A cripta é horror, mas o padrão das pedras é uma soma. O convidado reconhece sem ser reconhecido – vida no leito de morte.
Roderick: Olha para mim, pareço cheio de vida? Formigas pretas grandes espreitam individualmente como baratas debaixo de sofás e pratos. O convidado quer salvar Roderick – de quê? Como se salva lama?
Contemplei-o a olhar fixamente para o vazio durante longas horas, numa atitude de profunda atenção, como se estivesse a ouvir algum som imaginário.
Um odor forte no quarto do convidado. Ele cheira os cobertores, verifica o cesto – teme que o sémen num lenço de papel tenha putrefato? Ele encontra o aroma reconfortante do seu corpo. A sensação e o acontecimento alguma vez coincidem? Ele olha para o caixote do lixo, volta a ele e segura as lírios-do-vale secas junto ao nariz.
O medo é um gesto não concluído. As nuvens movem-se rapidamente mas circulam a casa: últimos suspiros atraídos numa excitação estagnada. A natureza exibe as cores do espírito: o conforto da tempestade. Por trás da maravilha do fracasso moral, o desconforto de encontrar um histórico de casos – colapso mental ou gene defeituoso.
Acabara de dar alguns passos desta maneira quando um passo leve numa escada adjacente prendeu a minha atenção.
Roderick veste um roupão sobre a sua camisa de dormir. Ele olha-se no espelho à sua expressão – expressão involuntária de horror – como se fosse um libertino tentando alcançar o seu próprio orgasmo. Ele observa o seu rosto, pálpebras forçadas para trás, tentando isolar choques reais de expressões que habitualmente estende para se excitar. Roderick observa a sensação em si mesmo durante o breve pânico e morte certa.
Num momento de moralidade óptica, vejo-me perceber com força desumana: as figuras desgastadas da morte, do amor e do retorno. A imaginação suporta a experiência em seus extremos – demais e de menos amor. Madeline levanta as mãos como se conduzisse um tumulto. Vacila para a frente. Sinaliza ao longe para a tempestade.
As ombreiras estalam, moscas zumbindo emergem do chão negro, janelas tagarelam, caveiras tagarelando.
Madeline recua de Roderick – ele está completamente desprendido pelo suor gelado. Os seus sentidos brilham enquanto desabam. O corrimão da carne cede.
Por um momento, ela permaneceu tremendo e oscilando para frente e para trás sobre o limiar – então, com um baixo gemido de lamentação, caiu pesadamente para dentro, sobre a pessoa do seu irmão…
Fumo gorduroso pulsa das janelas e o redemoinho faz-me rir por algum motivo. Todos os objetos na Terra colocados de certa forma estão prestes a mover-se.
Roderick vai além das últimas palavras: levar todos os sentidos para a morte – é uma comédia!
O que pode a história do fim fazer e o próprio fim? Pedras explodindo tornam-se linhas de velocidade.
O convidado esfrega a decadência nas calças brancas. Atrás dele, a Casa desmorona-se em dois enquanto o pó acre ergue uma casa de sombra tão enorme que ele não vê nem pensa. Ele quer uma banheira de água, não para apagar um incêndio, mas para lavar-se. Como o símbolo o suja, as sombras ocultas, a imaginação igual ao mundo, e o fedor do outro mundo.
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De repente, surgiu ao longo do caminho uma luz selvagem, e virei-me para ver de onde poderia ter surgido um brilho tão invulgar.
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Robert Glück (São Francisco) é poeta, escritor de ficção, crítico e editor. É autor das coleções de contos “Elements” e “Denny Smith”, dos romances “Jack the Modernist”, “Margery Kempe” e “About Ed”, e de um volume de ensaios reunidos, “Communal Nude”. Os seus livros de poesia incluem “La Fontaine” com Bruce Boone, “Reader”, “In Commemoration of the Visit with Kathleen Fraser” e “I, Boombox”. Fez um filme, “Aliengnosis”, com Dean Smith; um livro de arte, “Parables”, com José Ángel Toirac e Meira Marrero Díaz; e escreveu o prefácio para “Between Life and Death”, um livro de pinturas de Frank Moore. Com Camille Roy, Mary Berger e Gail Scott, editou a antologia “Biting the Error: Writers Explore Narrative”. Glück foi co-diretor da Small Press Traffic e editor associado na Lapis Press. Foi diretor do The Poetry Center na San Francisco State University, onde é professor emérito. Glück é também ceramista e já expôs as suas cerâmicas nos EUA e na Europa. Na década de 1980, em São Francisco, cofundou o movimento Nova Narrativa com Bruce Boone e vários outros.
Tradução para o Português por Tiago Alves Costa.