“A memória é uma oficina de ossos” I Mírian Freitas
O PÃO DE CENTEIO DE OSCAR WILDE
No cárcere de Reading, Oscar Wilde
escreveu na memória o pássaro
em flagelo
com as asas quebradas
os olhos com furos de pistola
as vísceras dobradas no canto da gaveta
os pés amputados pela navalha
da guilhotina.
Na prisão, havia túmulos de horror onde nasceram flores de pelúcia.
Havia sangue pisado debaixo da língua, líquidos e
lágrimas nos arrepios da morte.
Aos domingos, atrás das grades,
nas refeições matinais,
o pão de centeio trazia o verso do perdão.
Oscar Wilde lambia os farelos caídos sobre o chão
com sua língua de fogo.
Na cela, ao sangrar a fome na garganta,
o coração de pedra escreveu as leis eternas
da humanidade
num caderno de vidro
sobre os homens que choram
sobre os homens que matam o que amam.
*
CONSTATAÇÃO
Lendo (agora) um poema de Whitman
sei que os cemitérios estão dentro
de cada homem
ou mulher
na travessia em direção
ao deserto das sombras.
Sei que no útero da loucura
reside a morte.
*
EM LUMBINI
(Nepal)
Ao avistar o céu de Lumbini
voaram para dentro de mim
pássaros
à procura da morada secreta de Buda.
Entre os olhos e a cidade,
os vazios de Chopin tocam com os dedos
o inverno e a neve que passeiam sobre os Himalaias
ao final de janeiro.
O vento sopra os telhados desta manhã,
o uivo de quem se levanta:
− é um estrondo no horizonte de aves.
O peito acende o que dormia há anos,
a saudade é um idioma de árvores feridas.
A memória é um piano de pulsos cortados.
*
CULPA
Riscas um fósforo
para acenderes a flâmula do remorso.
Répteis vibram no escuro ainda?
Ou silenciaram-se no outono além?
No peito que arde nas cordas do tempo
a culpa é um punhal cravado no rosto de um girassol.
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Mírian Freitas é doutora em Literatura Comparada e profa do Núcleo de Línguas do IF Sudeste, Juiz de Fora. Publicou Intimidade vasculhada (2006), Exílios naufrágios e outras passagens (2016), Quase (2019), Caio Fernando Abreu: Uma poética da alteridade e da identidade ( Ensaio Ilustrado/2020), Quando éramos pássaros e outros poemas abissais (2021), Mosaico (2022), A memória é uma oficina de ossos (2023). Organizou a Antologia poética Alento, finalista do prêmio VivaLeitura (MEC e MINC/Gov. Brasil, 2016) e do prêmio Cláudio Willer de poesia da União Brasileira de Escritores de São Paulo (UBE/SP, 2023). Obteve menção honrosa (Poesia) pelo Casino de Lisboa, Portugal. Integrou a obra Mulheres: prosa de ficção no Brasil 1964-2010; participou das seguintes antologias: I Antologia dos poetas lusófonos (Portugal), Hilstianas I (Instituto Hilda Hislt, SP), Antologia Patuscada I, Um certo Rosário, Poemas no ônibus e no trem (Casa da Cultura/POA, RS), Off-Flip de literatura 2023, Pelo direito de existir- Taup, 2023 e outras. Realizou entrevistas com o poeta Gilberto Mendonça Teles (Ed. Galo Branco) e Benjamin Moser, biógrafo de Clarice Lispector ( Ed. Escala). Possui textos em prosa e poesia publicados em revistas e jornais de arte, cultura e literatura impressos e digitais como CULT, jornal Relevo, CP de Literatura, Acrobata, Sucuru, Trama, Mallarmargens, Ruído manifesto, Subversa, Diversos e afins, Desvario, Caliban, Palavra Comum (Galícia), Mal de Ojo (Chile), Innombrable (Colômbia), Kametsa (Peru), Vallej&Co (Peru) e outros.