Vulto vaporoso I Mariana Artigas
“para reconhecer na sede do meu emblema
para significar o único sonho
para não sustentar-me nunca de novo no amor” […]
– Alejandra Pizarnik
Um nome, uma feroz-dramaturgia: amar o ar no amor, desejo amar no beijo rouco das mariposas, uma tragédia anunciada. O ar sufocante beija de leve minhas olheiras fundas, fundas. Tudo começa com a cor branca invadindo minha mente e o proscênio de madeira se multiplicando. Adormeço pensando num crime nunca revelado, o erotismo da palavra reside na primeira letra datilografada no papel. Levanto-me tendo a certeza de que sou uma mulher que foi criada no interior, assim, bem longe da luz elétrica. Sei que, para você, eu devo ser incansavelmente repetitiva. Desperto minha criatividade ao escrever poemas circulares, porque nunca me foi concedido o dom da pintura. Meu rosto é arredondado e escrevo poemas-geométricos.
Vou ao açougue e compro carne fresca, tudo é muito novo. Às vezes, não reconheço nem minha própria imagem, quem dirá a imagem dos outros (…). Tenho dois aquários tatuados nas minhas coxas e o símbolo do signo de gêmeos delicadamente traçado na nuca. O que eu mais amo em mim mesma é a minha capacidade de ser irritantemente contraditória. Algo brilha e os meus dedos transformam-se em conchas, em abalones translúcidos. Estamos em janeiro e coço minha ferida até sair sangue. Logo, nenúfares e nêsperas escorrem lentamente pelos lençóis. Corpo em estado de musgo, compreensão selvagem da poesia.
Lembro-me de que você prefere os vinhos australianos. Penso em você como se fosse um professor de matemática (mas que idiossincrasia mais impossível). Entenda agora o subtexto da personagem. Amor, ouça: talk to me like the rain and let me listen. De súbito, sinto cheiro de chuva e uso pouca ou nenhuma maquiagem. Estou na rua, torno-me vaporosa e invisível. Ao ler Anne Carson, penso que a linguagem é, de certa maneira, oceânica e triangular, fluida demais.
Queria poder ser sincera e afirmar que os silêncios me são estranhos. Meu nome está seguro na sombra? Sinceramente, queria que estivesse. Acontece que não estou conduzindo nada. Não estamos mais sentadas no linóleo e o proscênio de madeira desapareceu. Sonho do sonho, mediação dupla. Como funciona o tic-tic-tac da memória?
Meu nome na sua escrita, meu nome na sua boca. Gárgula e vigia. Somos como Alma e Vogler? Semeamos cinza sob o linho branco, permanecem intactas as lãs e as ramagens, projeção débil, lâmina febril. A tua voz aparece sob outra voz, palavra-cantada, sonhos cobertos de uivo e silêncio.
Escorrer e escoar é um sopro, me atrevo a olhar a sua figura e dizer que esta é a sina de uma mulher emboscada na minha escrita. Mas não há som que me oriente, que me penetre nesta hora ínfima. A poesia tem nos pregado peças estranhas, cores e memórias que desembocam em personas caudalosas — mistura de barro, diamante, tigres e dinamite.
Há qualquer coisa de romper a realidade ao misturar a figura do poeta e do açougueiro. A língua de homens e anjos diverge desde o início dos tempos. Ambos os sexos confundem-se num fluxo de consciência inicial. Seiva derramada, memória e aeroplanos. A imagem de uma mulher em preto e branco: pavilhão de trevas. A fotografia de um seio, meia-taça.
Criaturas feéricas me assaltam esta noite, os tempos pandêmicos se foram, e com eles, a minha capacidade onírica. Fronteiras inúteis beijam a tua fúria, escolhemos ignorar o avesso da neutralidade: sim, lemos Borges e levitamos.
Mariana Artigas nasceu em Curitiba e é graduada em Letras Português-Inglês pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Lançou seu primeiro livro de poemas, Ossatura sutil, em junho de 2022, pela editora Urutau. Atualmente é professora de inglês e pesquisa a citacionalidade na poesia contemporânea. Artigas interessa-se pela temática de estudo: Poesia-Resistência. Além disso, seus poemas e contos podem ser lidos em revistas literárias nacionais e internacionais.
















