Psicopatologia dos homens que bebem quase nenhuma água I Francisco Rogido
Cinéfilo sério não assiste Western e muito menos Spaghetti Western, ou a isso que se convencionou chamar de Faroeste Espaguete. Geralmente torcem o nariz para esses filmes fedidos, cheios de vaqueiros e pistoleiros. Filmes onde justiça, vingança e traição se misturam num cenário em que a porrada e a bala é a lei, onde portanto, manda quem pode e obedece quem tem juízo. O gênero, principalmente o Espaguete, teve seu boom nas décadas de 1960 e 1970, e os críticos mais radicais sempre o consideraram como um subproduto vindo de um cinema europeu feito por diretores italianos desleixados, histriônicos e preguiçosos, que para economizar na produção rodavam seus filmes na empoeirada Almería espanhola, à toque de caixa.
Para cinéfilos sensíveis e educados, tudo que está para lá da Industry deveria ser olhado meio que de lado, mesmo que neste período de tempo mais de seiscentos filmes tenham sido rodados. E foi assim, dessa maneira. Para esse pessoal, apenas alguns diretores que tocaram no gênero seriam importantes. Na lógica deles, um George Stevens e um John Ford são uma espécie de deuses da raça dos filmes de Bang Bang. Não por que Stevens fez Shane (que em português se chamou Os brutos também amam). Nem por que Ford fez outros inúmeros filmes como por exemplo, No Tempo das Diligências (Stagecoach – 1939); A Paixão dos Fortes (My Darling Clementine – 1946); Rastro de Ódio (The Searchers – 1956) ; O Homem que matou o Facínora (The Man who shot Liberty Valance – 1962) e A Conquista do Oeste (How the West was Won – 1962). Ou seja, são considerados diretores geniais não por que fizeram apenas Faroestes, mas por que narraram, no conjunto da obra, uma certa história americana que se enquadrava direitinho nos mitos fundadores que seus cidadãos já carregavam em seu imaginário. Além do mais, os entusiastas desse gênero americano corroboravam com a crítica por que viam nestes founding fathers o resgate desse arquétipo de macho rústico e bruto, mas que no fundo era sensível e educado nos preceitos da ética protestante e do espírito do Capitalismo, como supostamente acreditavam dever ser o americano mediano. E aqui estamos falando de 50, 60, anos atrás. Que fique claro.
De lá para cá, a coisa mudou. Não que o Faroeste Espagueti, não tivesse tentado resgatar este arquétipo de suposta sinceridade, também. Mas foi Ford, com orçamentos milionários, quem surfou na onda de sucesso do gênero, e sem dúvida foi o mestre das paisagens gloriosas do sertão a Oeste do continente americano. Lidando sempre com personagens complexos, enfiou goela abaixo daquelas gerações um padrão estético e moral, e vamos dizer assim, bem branco e restrito. Bem restrito. Como ele, Anthony Mann o camarada que melhor filmou os anti-heróis cínicos e de passados turbulentos, foi o que melhor dirigiu James Stewart. Não falo apenas de Winchester ‘73, mas também de The Man from Laramie. Outros grandes nomes encostam na memória, como Howard Hawks e novaiorquino Raoul Walsh, que começou no cinema mudo e atravessou incólume sem naufragar por essa dura época de transição para o cinema falado, produzindo e dirigindo mais de oi-ten-ta filmes!
Tudo bem. Admito. Tem coisas que eu também engulo com a certa dificuldade de quem traga um whiskey paraguaio. Todos eles tinham essa mania estranha de fazerem mocinhos e bandidos andarem a cavalo metade do filme, percorrendo os desertos poeirentos do Texas, Arizona, Nevada e Califórnia, entrarem numa birosca qualquer, no meio do nada, sem poeira nos coletes, nem nas polainas, e muito menos nos chapéus. Reparem bem que os chapéus, principalmente dos mocinhos, era objetos impecáveis. Reparem bem que, em muitos filmes dos anos 40 e princípio dos 50, entre a poeira, a areia, o sol que queima, e o inclemente cheiro da bosta dos cavalos, os cowboys eram brancos como a neve do Monte Whitney, não usavam poncho e ainda por cima, se morriam, morriam atirando e com o chapéu intacto cravado na cabeça. E tem muitas outras coisas que discordo nisso tudo, mas deixa para lá.
Quando criança, estes filmes forjaram meus primeiros gostos pelo Cinema como arte, e eu achava tudo incrível. Nessa época o tal conceito da glorificação da opressão, nem passava pela minha cabeça, mas eu já desconfiava que havia algo errado naquele Choque de Civilizações, e acho que por isso mesmo eu torcia muito mais para um Sioux e um Apaches. Por que para além daquela coisa estranha de mocinhos brancos e impecáveis, também tinha essa questão do que todos falam hoje em dia, sobre o preconceito contra minorias. Criança não repara nesses conceitos, mas vê muita coisa. Me dei conta disso quando passei a me colocar na pele de um Cheyenne indignado ou um Crow com sangue nos olhos. Eu concordava com a raiva deles. Gostava deles. Além disso tudo, e pior do que tudo isso, era o detalhe daquele calor dos infernos naquele sertão poeirento e fedido dos infernos. Aqueles desgraçados, bandidos e principalmente os mocinhos viviam dando coices e nunca tomavam um copo d´àgua. Chegavam no local, amarravam seus cavalos, adentravam no tal do Saloom, botando banca e olhando para tudo e todos com aquela afetada desconfiança arrastada (por que desafetos, você sabe, há em todo o lado e uma pessoa tem que estar sempre atenta).
Outra coisa irritante é que olhavam com desprezo para os pinguços, e dependendo do roteiro, buscando ou evitando alguma encrenca já de cara na entrada do recinto. Encostavam no balcão olhando com malícia para as mulheres e pediam logo um rye whiskey. Isso tudo num take, só. Alguns dizem que, vivendo naquelas condições, apesar de rústicos, alguns até eram sensíveis e educados. Mas se paramos para pensar, esse clássicos diretores somente podiam retratar esse povo dessa forma, pois faziam filmes deles para eles, enquanto os cavalos ficavam lá fora mijando e bebendo hectolitros de água.
Sinceramente, acho que poucos críticos da estatura de um Kracauer, ousaram tocar no gênero. Outros que o fizeram, desconfio, que devem ter empregado aquela mesma soberba cinéfila, disfarçada de cortesia. Truffaut, por exemplo, dedicou nas suas memórias, The Films in my Life ínfimas linhas ao gênero. Nestas, ele até fala bem de John Ford, mas apenas nos artigos em que se refere à sua idade madura, e que coincidem com a decadência do gênero, já na década de 1970. Alí, reconhece que Ford foi um grande cineasta a partir de The Quiet Man de 1952. Malandramente, Truffaut desconsidera The Long Voyage Home e The Graps of Wrath (que não e bem um Western), filmados doze anos antes. Sabe aquela superioridade indulgente? Pois é, quando fala brevemente de Ford e de Walsh, Truffaut chove no molhado, citando o elogio óbvio como o mais fácil de enxergar: diretores das cenas grandiosas. Ou seja, diz apenas isso, mas pelo menos isso, já que do Spaghetti Western, nem isso ele diz, por que quem sabe já vinha perseguindo o Oscar de Melhor Diretor há mais de uma década, e obviamente não queria meter a mão na cumbuca das polêmicas.
Mas, voltando ao nosso tema, que são o dos tiroteios e das porradas, Siegfried Kracauer, um dos maiores defensores do realismo cinematográfico, é mais poético e condescendente com o gênero. Em seu livro Theory of Film, o teórico da Escola de Frankfurt, diz que o filme é o estabelecimento físico de uma existência, que é exatamente a tese centrar do livro dele. Nas palavras do teórico da Escola de Frankfurt,“não é possível imaginar uma emoção mais intensa, que àquela que leve o corpo a um suspense fisiológico tão agudo, quanto numa perseguição à cavalo, num faroeste. O galope parece ganhar força em contraste com a imensa tranquilidade do horizonte distante.”
Se tanto, com a devida licença do fordiano Monument Valley, cenário mais distintivo e mitológico do faroeste, a verdade é que o Spaghetti Western constitui um dos capítulos mais brilhantes do cinema europeu; e, sem dúvida, uma das expressões mais vigorosas e memoráveis do cinema de baixo orçamento, que quase sempre em regime de coprodução, contribuiu para o subgênero com o talento de seus cineastas, técnicos e atores e, sobretudo, com a paisagem calcinada do deserto de Almería.
Suspeito que uma das razões pelas quais o Spaghetti Western foi tão sumariamente desdenhado reside na sua própria audácia em desconstruir os mitos fundadores do faroeste americano – que já estava em franca decadência. Portanto, faz todo o sentido procurar explicações mais pragmáticas, que vão desde o gosto do público até o esgotamento da paciência com as versões edulcoradas dos heróis branco. Longe dos heróis imaculados e das fronteiras morais nítidas de John Ford, o Spaghetti Western mergulhou em um universo de anti-heróis ambíguos, violência estilizada e motivações cínicas, refletindo talvez uma visão mais desencantada e pós-Guerra. Essa crueza, aliada a orçamentos modestos e ritmos de produção frenéticos, foi interpretada como falta de refinamento, quando na verdade era uma reinvenção radical.
O tempo, esse grande juiz, tem sido generoso com o Spaghetti Western. Hoje, reconhece-se não apenas a genialidade de um Sérgio Leone e a trilha sonora icônica de um Ennio Morricone, mas também a inventividade de diretores como Sergio Corbucci e o impacto duradouro de atores como Clint Eastwood, Lee Van Cleef e Franco Nero. O que antes era visto como um defeito — a estética árida, a moralidade cinzenta, a economia narrativa e até mesmo a realista feiúra, por que não dizer — é agora celebrado como virtude: uma contribuição singular que expandiu os horizontes do faroeste e influenciou gerações de cineastas em todo o mundo.
Localizado na mediana entre uma obra de arte e um cânone do intelecto — como um gol de Pelé ou a Psicopatologia da Vida Cotidiana — o gênero, que não é uma coisa nem outra, ainda provoca torções de nariz entre os puristas. Muitos reconhecem a contragosto os méritos de Leone, a quem se atribuem (nem sempre com razão) as principais marcas estilísticas do subgênero; mas, em seguida, despacham seus cultivadores como uma corja de cineastas medíocres, órfãos de originalidade, uma espécie de barbudos casposos de esquerda que não merecem sequer a recompensa de uma nota de rodapé. Mas deixe estar, por que é nesse ponto que entra Sam Peckinpah com o pé na porta.
Peckinpah foi um elo entre o Western clássico e a brutalidade estilizada do Spaghetti. Com filmes como The Wild Bunch (1969), Pat Garrett & Billy the Kid (1973) e Ride the High Country (1962), Peckinpah não apenas radicalizou a estética da violência, mas também subverteu os códigos morais do faroeste tradicional. Seus personagens são homens quebrados, movidos por lealdades ambíguas e impulsos autodestrutivos, que caminham entre a honra e a ruína. Se Leone trouxe o silêncio e o olhar oblíquo, Peckinpah trouxe o sangue em câmera lenta, o crepúsculo da virilidade e a melancolia do fim de uma era. Como todos nós sabemos, ele não filmava apenas tiroteios, ele filmava a agonia de um gênero em decadência.
Por essa e por outras, ignorar Peckinpah, principalmente em The Wild Bunch, na história do Western é como falar de tragédia sem mencionar a primeira parte da Orestia de Ésquilo, no retorno de Agamêmnon. Tu duvida? Então, pense que Peckinpah não pertence ao Spaghetti, mas dialoga com ele com tamanha intensidade, forma e espírito, que coloca um William Holden completamente envelhecido no papel de Pike Bishop, um fora da lei decadente que decide, com seu grupo Wild Bunch atravessar a fronteira do México para roubar o forte do corrupto general Mapache, e depois, sem saber o que fazer com o dinheiro, desiludidos, voltarem para resgatar o companheiro Angel, mantido refém das tropas de Mapache. Sem dar spoiler, a única diferença é que Pike Bishop não tem um Orestes para vingar os Wild Bunch. E talvez seja justamente nessa interseção — entre o dublado deserto espanhol e o desespero americano com sotaque caipira — que o faroeste encontrou sua expressão mais bela apesar de suja, mais agre apesar de humana.
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Francisco Rogido nasceu no Rio de Janeiro em 1972. É mestre em História, escritor e tradutor. Dedica-se também à xilogravura, gravura em metal e ponta seca, tendo realizado várias exibições na California e na Galiza.Trabalhou por alguns anos como tradutor do projeto Biblioteca Digital Mundial (WDL) da Biblioteca do Congresso/Unesco em Washington D.C. Teve contos publicados em sites literários portugueses como Pnet Literatura, na Revista Cult (Brasil), Agália (Espanha), e Revista da Faculdade de Letras de O Porto, E-Fabulações (Portugal) e São Paulo Review (Brasil). Neste momento, esta concluindo sua primeira novela e os contos reunidos no livro Náufragos do Escolho, lançados em 2025 pela Editora 7Letras, ficaram entre os dez finalistas do Prêmio Latino-Americano de Literatura Jovem da Aliança Francesa de São Paulo-Brasil/2008.














