Maria Mello Giraldes: a poética do corpo e da origem

Há poetas que escrevem como quem regressa à origem. Maria Mello Giraldes ((1943-2020) é uma dessas vozes raras: a sua linguagem nasce do corpo e regressa a ele, num gesto que é simultaneamente carnal e cósmico. Foi através do poeta e amigo Filipe Campos Mello — filho de Maria Mello Giraldes — que este livro chegou às minhas mãos, como quem entrega uma herança silenciosa, uma voz que pede escuta. Em Obra Reunida (Tigre de Papel, coleção Ventriloquia, em parceria com o UMCOLETIVO), reúnem-se quatro momentos de uma mesma travessia: 5 Espaços (1983), Seis Momentos (1988) e os inéditos Milénios e Memória da Matéria.
Em 5 Espaços, a poeta instala-se no limite entre a queda e o renascimento. A palavra é corpo que se procura, matéria em combustão interior:
“arrasto-me veloz sobre a ponte
todo o peso está ali e cai
o saber aonde é já saber a fonte.
[…]
escrevo
acima do poder a força de te amar.”
— 5 Espaços (1983)
O poema ergue-se como um exercício de resistência: um “acontecer de nada no silêncio”. A poeta inscreve-se num território em que a palavra não explica, mas vibra e onde o pensamento se torna físico. Já em Seis Momentos, a escrita adquire uma dimensão mais íntima, quase visionária. O diálogo entre o eu e o corpo torna-se espelho e aparição:
“abre a página.
derrama o óleo sobre o deserto da tua imagem.
se fosses corpo num lugar outro, não te falaria,
mas a tua boca repete a presença de um instante.”
— Seis Momentos (1988)
A sua obra, agora reunida, devolve ao presente uma das vozes mais singulares da poesia portuguesa contemporânea, uma poeta cuja palavra é matéria viva, capaz de unir o visível e o invisível, o íntimo e o cósmico. Entre o silêncio e a revelação, Maria Mello Giraldes concebe o poema como um lugar de transfiguração onde o corpo se redescobre na própria linguagem e o tempo se converte em respiração.
Ler Maria Mello Giraldes é atravessar um dos territórios mais secretos da poesia portuguesa, um espaço onde a linguagem se torna experiência absoluta. A sua obra, breve e incandescente, possui a intensidade das coisas que não precisam de se repetir. É uma poética da revelação e do abismo, onde o erotismo se confunde com o pensamento e o pensamento com o gesto de respirar. Em cada verso, um mergulho na origem, um sopro que restitui à carne a sua dimensão espiritual. Poucos livros alcançam esta claridade, a de transformar o silêncio em substância e a matéria em visão.