Na fotografia o trecho devastado de uma floresta. É o início da construção de uma via que irá decepar o corpo de uma cidade. Ao longe, operários, instrumentos de trabalho, tratores, automóveis. Num primeiro plano, duas mulheres trajadas com elegância passeiam numa avenida que não existe. A imagem é do fotógrafo Wilson Baptista. Pode ser lida como preâmbulo visual ao Amazonas, (Chão da Feira, Belo Horizonte, 2024), livro de Filipe Chimicatti que relata em imagens o que resultou daquela devastação da Natureza. Lugar onde era o verde. Hoje, cicatriz. A fotografia é de 1940. Revela um espaço que será cortado pela futura Avenida Amazonas, na capital das Minas Gerais.
Como se anunciasse:
Observem estes apontamentos fotográficos da desconstrução de um lugar. Retratos de uma ideia de desenvolvimento que tomou conta de dirigentes de um país naquela década. A que culminaria na construção de Brasília.
Lemos a imagem como se ela abrisse um diálogo entre os dois fotógrafos em torno de dois tempos de um mesmo lugar. Wilson Batista, o autor da foto- documento do abate da natureza que findaria por se tornar uma avenida antítese da floresta real. Filipe Chimicatti, o autor do livro que resulta do percorrer de sua câmera através de uma avenida Amazonas de concreto e cal.
Mais de meio século separa as imagens colhidas pelos dois. Ao vê-las nos desperta um sentimento de cumplicidade. O imaginar que o mais velho legou ao companheiro de ofício o elo de um fio perdido. O do instante em que a Natureza dilacerada vai cedendo lugar a um novo tempo de destruição, pressa, descalabro. Ao sairmos desse introito fotográfico penetramos no núcleo do livro de Filipe Chimicatti, cujo título porta uma ambiguidade proposital:
Amazonas.
Em itálico. Então, lemos nas fotos marcas cravadas naquele mesmo cenário, meio século após as registradas pelo seu colega de câmera. O antes floresta agora uma artéria viva e decrépita cruzando a cidade. Algo assemelhado a um abismo entre colinas decepadas. Ou a uma paisagem lunar cortada como “uma fruta por uma espada”, verso de João Cabral que serve de epígrafe ao livro.
Através das imagens nos deparamos com detritos urbanos, fios elétricos enrodilhados, faróis agredindo a noite, o lixo. E por elas somos levados à chave que elucida nosso desassossego urbano. O sentimento de ruína e tristeza a brotar de uma navegação fotográfica entre o nascimento e a foz de um Amazonas que não existe.
Então, explicita-se o título do livro. Fotografias de um lugar curioso, grotesco. Uma avenida tornada a antítese do seu próprio nome. Ao invés de nos acordar para uma expressão da Natureza, embarca-nos num passeio pela destruição. Uma triste avenida Amazonas em itálico.
Então, pressentimos os custos de uma certa ideia de progresso. Sobretudo quando esbarramos nas fotos de arquivo de um desastre ocorrido naquele mesmo lugar. O de uma Avenida Amazonas atingida pelo maior acidente de trabalho do país, num 4 de fevereiro de 1971. Batizado pelas manchetes dos jornais como A Tragédia da Gameleira. Desmoronamento de um edifício projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer e que resultaria na morte de 69 operários. 69 trabalhadores cujas famílias nunca foram indenizadas.
De fato, 70 vítimas, na medida em que o desastre apressou o final de Joaquim Cardozo, grande poeta e calculista da obra. Ele, que havia concebido as equações que viabilizaram as ousadias arquitetônicas de Brasília, injustamente acusado como responsável por um episódio causado por interesses subalternos. Julgado inocente, findou tomado por uma tristeza que mata. Despediu-se do seu Recife pouco tempo depois. O poeta que num liso papel sabia como ninguém percorrer a escuridão e tatear com leveza seus contrastes.
Num dos textos do livro de Felipe Chimicatti, Junia Mortimer, professora da Universidade Federal de Minas Gerais, autora do prefácio, narra como, através do pai engenheiro, soube daquele desastre que marcou o país. Episódio que se tornaria um estigma no corpo da cidade. Mortes provocadas pelo frenesi de novas construções em meio ao silêncio e aos mecanismos do poder.
A Amazonas avenida, observada durante meses pela lente de Felipe Chimicatti, pode ser comparada a uma espécie de imensa serpente urbana prestes a devorar nossas vidas. Em cada imagem, fios destorcidos, calçadas desfeitas, pavimentações descascadas. O sujo e o feio que a caracterizam utilizados como matéria-prima pelo fotógrafo num exercício de arte visual.
Portanto, não se deixe surpreender o leitor pelo título do livro.
Trata-se de uma Amazonas sem as clássicas fotos de feras e florestas. O que nele descortinamos é a maré de veículos desfilando a impaciência e o descaso, a luz de faróis explodindo no desvario da noite. E aquele cinzento que recobre calçadas e fiações a se entrecruzarem, como se tentassem aprisionar as nuvens e a vida dos homens. Talvez até mesmo a de alguém que ainda recorde o episódio da Gameleira e desvie o olhar ao transitar por aquelas paragens pesadelo da cidade.
Pois, o Amazonas de Felipe Chimicatti não é apenas excelente álbum de fotografias. É o retrato do sórdido cotidiano de muitas de nossas ruas e avenidas. Advertência para nossos índices alarmantes de acidentes, alguns provocados pela compulsão de um passar rápido quando não se quer avistar o que nos molesta ou envergonha. Ou pelo sentimento de que ali somos suscetíveis de sucumbir numa última paragem.
Porque o Amazonas de Felipe Chimicatti, em suas imagens de arte, acabam também por revelar uma avenida antítese daquelas concebidas pela poesia de Joaquim Cardozo como:
(…) cordas de um instrumento
Vibrando à passagem dos motores.
Deixando no ar nova música
Onde há ritmos de horizontes margeantes.